Logo O POVO+
Tudo começa por uma interrupção
Foto de Socorro Acioli
clique para exibir bio do colunista

Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Tudo começa por uma interrupção

Tipo Crônica

Um dos efeitos imediatos após a leitura dos romances do escritor italiano Alessandro Baricco é a vontade de conversar sobre as janelas que ele abre. Essa é a consequência natural de toda boa leitura, na verdade. Um leitor encantado gosta de falar com alguém quando o livro acaba, discutir, comentar, construir castelos com as ideias que o texto foi puxando pelo caminho, entre um gole e outro de qualquer bebida do seu agrado. Do café ao vinho, cada um escolhe o seu.

Esse diálogo delicioso é parte essencial da vida de um leitor, o que me faz lamentar muito pelos eremitas solitários, trancados em bibliotecas volumosas sem ter uma alma leitora por perto para fazer a literatura transformar-se em vida, alegria, som e luz. Do que vale uma biblioteca sem um raio de sol? Ler e viver deveriam ser, sempre, uma só experiência.

Pois Baricco, este profícuo escritor, me arrebatou mais uma vez com um par de livros: A Noiva Jovem e Mr. Gwyn. Completamente diferentes em todos os aspectos, igualmente inesquecíveis. A Noiva Jovem conta a história de uma mulher de dezoito anos que chega à casa da família do noivo na data combinada para o casamento mas não o encontra lá. Ela veio sozinha da Argentina. Ele está na Inglaterra, mandando seus pertences aos poucos e preparando sua volta.

Enquanto aguarda, a noiva jovem convive com a futura família, os sogros, a cunhada, o tio, os empregados. A beleza do livro está na coleção de segredos sensuais e oníricos que ela descobre a cada conversa, a cada troca de confidências, na aproximação com o corpo dos moradores deste lar inusitado. Enquanto espera, ela descobre coisas sobre a vida que até então desconhecia - talvez as mais importantes.

No outro livro, Mr. Gwyn, o autor fala de um escritor contemporâneo, Jasper Gwyn, famoso na Inglaterra e em outros países, que decide abandonar a carreira literária. Sua primeira providência é escrever um artigo para o The Guardian e listar as cinquenta e duas coisas que nunca mais fará na vida, entre elas posar para fotos com o queixo na mão, fazer palestras para estudantes, escrever artigos para o The Guardian e publicar livros.

Há uma ironia inteligente perpassando o livro inteiro e arrisco dizer que o autor emprestou muito da sua experiência no meio literário ao narrador e ao personagem. São coisas desgraçadas e hilárias a colecionar ao longo de uma carreira.

Admiro em Baricco a habilidade de fazer muito com tão pouco. Os dois livros em questão tem um círculo pequeno de personagens, cenários limitados e talvez por isso ele consiga aprofundar tanto os temas de cada um. Seda e Sem Sangue, outras novelas de Baricco, têm a mesma característica e passeiam por tempos e espaços muito distintos entre si.

A frase que dá titulo a essa crônica é de Paul Valéry, usada como epígrafe do Mr. Gwyn. É disso que as duas obras falam, dos planos e sonhos interrompidos, o que fazer com o que vem depois. As decisões da noiva jovem sem nome e de Jasper Gwyn são tão boas que nos prendem até o fim. Talvez seja mesmo uma forma de entender que nossos planos, muitas vezes, estão completamente errados. Essa é a graça da vida: na brecha do erro é que nascem as coisas superiormente interessantes.

 

Foto do Socorro Acioli

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?