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Palavra Raimundo
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Palavra Raimundo

Tipo Crônica

Lembro do dia em que ele chegou em um dos meus primeiros cursos de Escrita Literária, em 2013. Procurou o lugar mais escondido, como se fosse possível não aparecer para uma professora tão atenta. Durante os seis anos em que tem sido meu aluno, jamais sentou nas primeiras cadeiras. Passa as aulas em silêncio, quase impossível ouvir sua voz. Leva um estojo impecável, com poucos objetos, somente o básico para escrever e anotar tudo que foi dito, especialmente as indicações de leituras. Gosta de Faulkner, Tólstoi, Dostoiévski, Atiq Rahimi, Raduan Nassar, Graciliano Ramos, Campos de Carvalho, Marcelino Freire, Manoel de Barros, Ray Bradbury.

Toda boa história começa com um "e se...?" - é uma das frases que repito à exaustão no momento do curso em que os alunos estão observando o mundo para decidir a história que vão contar. Lá pelo quarto curso que ele fazia comigo, pedi que apresentasse um resumo do projeto de livro que pensava em escrever. Ele me entregou uma dezena de páginas impressas em papel bege, de boa gramatura, organizadas em uma pasta transparente: E se... um homem de setenta e um anos, analfabeto, decidisse aprender a ler e escrever para finalmente abrir a carta que recebeu aos dezessete anos e permaneceu lacrada todo esse tempo?

É uma sinopse forte. Nela já existe a semente de uma grande história, planta inúmeras perguntas. Quem mandou essa carta? Por que ele nunca abriu? Por que não pediu a alguém que lesse para ele? Por que guarda por tantos anos? Por que só aos setenta e um anos ele teve a coragem de encarar o seu passado? Qual é o tema desse segredo que atravessou uma vida inteira?

O nome do meu aluno é Stênio Gardel. O nome do livro é Palavra Raimundo.

Da primeira ideia até agora, foram quase seis anos trabalhando no texto. Minha colaboração aconteceu em três momentos. O primeiro foi dizer, repetir, garantir que ele tinha um grande projeto nas mãos. O segundo foi ler o livro durante a escrita, sugerir mudanças de caminho, decisões, revisões e confirmar que é, sim, literatura da melhor qualidade. A editora Vanessa Ferrari também cuidou do texto e deu sugestões importantes para o resultado final.

O terceiro momento foi encaminhar o Palavra Raimundo para a editora Companhia das Letras, uma das mais importantes do Brasil. Depois de muitos meses de espera, soubemos que o livro foi aceito. Stênio, meu aluno, será publicado pela mesma editora que eu e representado pela minha agente literária, Lucia Riff. O mérito é dele. Meu papel foi colaborar para que um grande livro tenha o destino que merece. O papel de um professor é esse: fazer com que seus alunos alcancem o máximo que podem.

Soubemos da notícia em plena Bienal do Livro do Ceará, nossa festa dos livros, tempo de celebrar a vitória das palavras sobre as tristezas do mundo. Na próxima Bienal, o livro do Stênio já estará nos stands sendo vendido, autografado, lido e premiado, porque vale todos os prêmios. Stênio Gardel é uma voz literária autêntica. Empregou mais energia em cuidar do livro do que posar de escritor. Fez cursos, leu, estudou. Muito trabalho, nenhuma vaidade. Exemplo a ser seguido. Meu orgulho. Orgulho cearense. Palavra Raimundo é um livro sobre a dor causada pelo preconceito e homofobia, mas é também sobre a vitória do amor. No meio da festa, nasceu um rebento.

Foto do Socorro Acioli

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