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A hora certa
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A hora certa

Tipo Crônica

Dediquei horas a ler e reler as sessenta e uma primeiras palavras do romance Lavoura Arcaica, do Raduan Nassar. Estou treinando para decorar, como se fazia antigamente. Não pretendo declamar para ninguém, fazer alarde em praça pública, mas até acho bonito quando um senhor de outro século, de cabeça branca, declama os versos de seu tempo de juventude, dos poetas das rimas, dos grandes feitos. Como se fosse orgulhosa herança guardada no peito, poemas completos de ouro e prata.

Quero apenas falar para mim mesma, sempre que necessário. Baixinho. Escolher um trecho e fazer uma tatuagem. Gravar na pele, que já tem outras palavras inscritas. Fazer do meu corpo o livro dos livros. Gravar Raduan para não esquecer nunca do que ele conseguiu construir com um conjunto de vocábulos que usamos tão desavisados, separados, fora de contexto, mas que nas suas mãos viraram uma possibilidade com tantas dimensões.

O Lavoura Arcaica foi publicado no ano em que eu nasci. Com alguns descontos de meses nas nossas gestações, temos o mesmo tempo de vida e andanças pela terra. Sou, também, feita de palavras. Todos somos. O nome próprio, as perguntas de cada vida, os adjetivos que nos levantam ou derrubam. Não tenho explicação que justifique a demora absurda deste encontro além da certeza de que as coisas acontecem na hora em que precisam acontecer.

Essas sessenta e uma palavras respondem às pessoas que perguntam, por exemplo, a diferença entre um texto qualquer e um pedaço robusto de Literatura. Encher um papel de palavras é fácil. Difícil é alcançar a verdadeira Literariedade. É assim:

Os olhos no teto, a nudez do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo;

E continua, até que o personagem levante, recobre os sentidos, abrace o irmão e siga adiante. Essa história, que tem o tempo da minha vida, já passou, antes, por inúmeras pessoas, outros idiomas, virou filme, atravessou fronteiras.

Outro leitor do Lavoura Arcaica me disse que nunca esqueceu da rosa branca do desespero. Que não poderia viver se a literatura fosse retirada da sua vida, se perdesse as horas de leitura e escrita. As coisas estão todas completamente amalgamadas, como se o caminhar pra dentro e para fora dos livros fosse, pouco a pouco, uma forma saudável de delírio.

Para mim, para ele, para tantas pessoas, é a literatura que sustenta a vida. Todas as experiências ganham sentido porque os livros existem. Porque é possível transitar por suas pontes. Porque nos transportam para onde devemos ir. E porque, felizmente, constroem as ilhas que salvam nossos corações da angústia. Mesmo que demore, há sempre a hora certa da salvação.

Foto do Socorro Acioli

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