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Imaginar antes de pensar
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Imaginar antes de pensar

Se eu fosse médica (e eu quase fui, por um triz!) eu receitaria poesia no café da manhã de todos os meus pacientes. Um poema ou dois, escritos por pessoas que sabem mesmo reunir as palavras e construir novos sentidos sobre a vida. Poesia de verdade é isso. O resto é só verso. É muito mais fácil escrever um bom romance do que um bom poema.

Pois, se eu fosse médica, teria um receituário de poemas e essa indicação seria apenas um reflexo do que eu mesma pratico, pois leio poesia diariamente. Esses dias, andei relendo o Livro das Ignorãnças, do Manoel de Barros. O meu exemplar é autografado. Estive com ele em um evento no Ideal Clube e, enquanto ele escrevia no meu livro, caiu um besouro entre nós. Ele pegou aquela naturezinha miúda na mão, observou, falou do besouro olhando nos meus olhos. Depois deixou que ele fosse embora. Temos uma foto de nós três, eu, Manoel de Barros e o nosso amigo amarelo.

Hoje eu tomei banho no pedaço de mar em frente ao cenário desse encontro e pensei nele. Em casa, li meu poema preferido deste livro e eu vou copiar aqui, caro leitor, para que essa seja sua dose poética do dia:

O rio que fazia uma volta atrás da nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás da casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama Enseada.

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu a imagem.

Poemas são mágicas individuais. Cada um vê o que quer, outros não enxergam nada. Nesse poema eu enxerguei a Lua cheia, a beleza de tudo e todas as palavras que derivam dela, o brilho da Lua sobre a cobra de vidro. A tristeza do menino que perdeu a cobra de vidro e ganhou uma enseada. A tristeza das crianças que são felizes imaginando e depois ficam tristes porque desaprendem a inventar. Todo mundo precisa de uma ilusão, repito a frase da mãe da minha grande amiga Izabel Gurgel.

Tem gente que nasce com o dom de imaginar antes de pensar. Primeiro inventa, primeiro vê uma cena impossível e depois é obrigada a desfazer a ideia porque o mundo real não deixa. Tem gente que só sobrevive porque arranja um lugar inventado para viver. E vive lá algumas horas por dia.

É comum que seja uma ilha, daquelas que nenhum radar alcança, que nenhum mapa registra. Elas existem aos montes. Sei de pares de sonhadores que mudam para lá, levam livros, músicas, palavras em vários idiomas, muitas horas despretensiosas, papel e caneta, fazem o que querem com seu tempo e voltam mais fortes para encarar as enseadas do mundo. Quem imagina antes de pensar encara o medo e sobrevive. Esse é o segredo dos moradores das ilhas desconhecidas. Temos cobras de vidro, lua cheia e deixamos que as coisas nos atravessem profundamente para que possamos permanecer. Parece com ser louco, mas é outra coisa. Os habitantes das ilhas se reconhecem.

Foto do Socorro Acioli

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