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Milagres de gente
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Milagres de gente

Escutar é estar consciente do que se ouve. Ficar atento para ouvir. Prestar atenção.

Dar ao outro o próprio silêncio. Abrir as portas para sua fala. Deixar que diga, até esgotar. Até escapulir o que estava preso. Até que a luz acenda. Tenho pensando muito no verbo escutar por causa da Eliane Brum e das coisas que ela me ensinou nos últimos dias. Ela disse que o escritor de ficção é um escutador de personagens internos, enquanto o repórter é o escutador de personagens externos. Pois somos, eu e ela, escutadeiras.

Eu estava distraída entre compromissos e voos no Rio de Janeiro quando soube que almoçaria com Eliane Brum. Distraídos venceremos, Leminski tinha razão. Dentre tantas coisas em comum temos um farol chamado Lúcia Riff, nossa agente literária, que aproveitaria o tempinho entre nossos voos para encontrar as duas ao mesmo tempo. Altamira e Fortaleza ficam longe do Rio, toda hora é válida para conversar e matar saudades.

Somos jornalistas, mas optamos por caminhos diferentes de escuta. Eliane é uma das melhores do nosso tempo, incansável e corajosa, com um texto limpo e pleno de literatura, vida e respeito pelas pessoas. Seu livro O olho da rua, uma coletânea de dez reportagens publicadas na revista Época, percorre o arco entre o nascer e o morrer e transforma o leitor amalgamando sua vida com histórias reais do nosso Brasil profundo, onde as coisas acontecem e não são vistas.

Minha amiga Jéssica Welma, também jornalista e grande admiradora da Eliane Brum, mandou para mim um trecho de uma fala que diz muito porque seu trabalho alcança o coração de quem lê: "Todo o meu olhar pelo mundo é mediado por um amor desmedido pelo infinito absurdo da realidade. E pela capacidade de cada pessoa reinventar a si mesma, dar sentido ao que não tem nenhum. São estes os únicos milagres em que acredito, os de gente."

É preciso se esvaziar da própria realidade para ser preenchida pela linguagem do outro, ela diz também, ao falar o ofício do repórter. Essa lição tão profunda da Eliane me faz pensar que o mundo seria muito melhor se as pessoas escutassem mais as outras assim, com a atenção que a acepção do verbo preconiza. Entender o fio de palavras que percorrem pensamentos e vozes para narrar, revelar, suplicar, declarar, denunciar ou apenas dizer, essa necessidade humana.

Nosso encontro foi breve e me marcou para sempre. Na presença de Eliane lembrei de uma das músicas mais bonitas do Secos e Molhados, Fala, a declaração em primeira pessoa de alguém que compreende a função dos ouvidos de uma alma para a outra: Eu não sei dizer/Nada por dizer/Então eu escuto/Se você disser/Tudo o que quiser/Então eu escuto/Se eu não entender/Não vou responder/Então eu escuto/Eu só vou falar/Na hora de falar/Então eu escuto/Fala". Essa canção, lenta e tranquila, quase consegue pausar o mundo ao redor, silenciar ruídos e deixar só o que vale a pena.

É preciso ser um bom ouvinte quando se decide escrever. Seja na ficção ou no jornalismo, é preciso observar em silêncio a vida que corre ao redor para apreender um pouco da realidade e intuir o imponderável. Nunca precisamos tanto do verbo escutar. Seja para depois trocar as roupas das palavras e transformar em texto, como faz Eliane, ou para compreender o outro na sua complexidade. Nunca precisamos tantos dos encontros reais. Deixar que uma vida transforme a outra, esse é o milagre das gentes. Entregar e receber a palavras mais honestas. Escutar respeitosamente. Estar presente. Até que a luz acenda.

Foto do Socorro Acioli

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