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Livro emprestado
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Livro emprestado

Tipo Crônica

Terminei de ler Pergunte ao Pó, do John Fante. Muito atrasada, parece que o mundo inteiro já leu e fui a última da fila, mas não há problema algum. Eu não entenderia este livro antes, nunca conseguiria alcançar até onde ele pode ir. Precisei esperar que chegasse da maneira certa. Às vezes vem no encontro despretensioso nas prateleiras da livraria; ou da recomendação dos jornais e das revistas; dos amigos. Acontece também de ser o livro da moda, que todo mundo lê porque todo mundo está lendo. Chegam como presentes, acasos, obrigações.

De todas as modalidades no encontro de uma pessoa com um texto literário, a mais bonita é a da categoria livro emprestado, aquele que vem com a marca de ser o mais importante da vida de quem leu antes. O exemplar antigo, de muitos anos, de inúmeras leituras, o livro-companhia, que foi abraçado. O livro-salvação, que foi beijado. Por tudo isso decidi que deveria fazer com ele, o romance do Fante, o que fiz com os livros da minha adolescência: dedicar um sábado inteiro à leitura, jogada na cama, como se não tivesse nada mais importante ao meu redor.

Horas depois de virar a última página, a primeira coisa que tenho vontade de dizer é que este não é só um livro sobre um escritor em franca tentativa de carreira em Los Angeles, como dizem as resenhas todas. É sobre resistência e paixão. Primeiro: o mundo ao redor do Arturo Brandini está desmoronando - e os recursos narrativos que o autor usou para figurar isso são uma aula. Final dos anos 30, começo da Segunda Guerra, dez anos depois do colapso da bolsa, o século que apresentou os primeiros sinais graves de agonia do capitalismo. O mais incrível é que nada disso é descrito e não poderia ser melhor retratado. Não há nenhuma parada explicativa.

Segundo: há todo tipo de dor ao redor dele. Os personagens são um catálogo das angústias humanas, das mais profundas. Deslocamento, solidão, fome, miséria, drogas, doença, velhice. Seu vizinho é o próprio demônio, arrastando o corpo entre o vício em gim e carne. Só depois de pensar nisso notei que ele tem hell no nome.

O narrador não tem medo de expor a sordidez de ninguém, nem dele mesmo. E só quando se depara com uma vida em colapso e com uma experiência intensa de paixão ele consegue alçar o próprio voo e escrever.

Terceiro: achei curiosa a repetição das palavras satisfeito (ou satisfação) e contente. Queria saber o que ele usa no original, em inglês, pois li uma tradução. E fiquei pensando na distância entre estar satisfeito, contente e feliz. São estágios distintos. A felicidade é mais rara. Quantas vezes ele fica feliz no livro? E nós, quantas vezes ficamos realmente felizes? E por que não fazemos mais vezes o que conduz à real felicidade?

Quarto: enquanto tudo desaba ao redor, enquanto todo mundo colapsa, ele escreve para sobreviver. Isso arrebata a gente. Para quem escreve com a violência das carnes, quem arranca palavras de um lugar secreto por dentro, esses momentos em que ele recebe as duas respostas positivas são de uma beleza absurda, flor no pântano.

Gostei, sim. Gostei muito. Não é um livro para ler uma vez só. Comprarei um para mim, preciso riscar, preciso gravar umas frases. Gosto dos olhos dele para o mundo, odeio quando ele é só um garoto estúpido, adoro quando ele persevera, amo quando ele fala das laranjas como um suco de sol. O próximo livro também é emprestado, de certa forma e muito bem indicado. Vou ler Henderson, o rei da chuva, de Saul Bellow, enquanto pego vários aviões até pisar na África pela terceira vez. Espero que a leitura me deixe como Arturo Brandini: contente e satisfeita. E que a África me faça feliz.

Foto do Socorro Acioli

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