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Moçambique e a voz do Índico
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Moçambique e a voz do Índico

Tipo Crônica

Em Maputo, capital de Moçambique, vivi a felicidade de um reencontro. Minha quarta viagem à África confirmou meu entusiasmo por esse continente imenso, indecifrável, profundo, incompreendido. Sabemos pouco ou nada sobre esse grande espírito continental, que também é nosso. Compartilhamos um passado cujos segredos os séculos apagaram, mas a alma recorda.

Quando eu era criança meu padrinho, Ary Leite, trouxe um grande búzio de uma praia ao norte de Moçambique e me deu de presente. Nenhuma porcelana seria tão perfeita, nenhum artista pingaria manchas marrons daquela maneira e só as mãos da criação permitiriam que a voz do Oceano Índico morasse dentro da concha. E quando eu era criança achava aquele mar tão longe dos meus olhos que não achava possível tocar. De repente eu estava diante dele, dormindo embalada pelas ondas ao lado da bela casa que me hospedou.

Quem me leva para viajar são as palavras. Elas chegam antes do meu corpo, é por elas que me transporto. Cheguei a Maputo a convite da Embaixada do Brasil em Moçambique, com a missão de dar aulas para estudantes da Escola de Jornalismo de Maputo; conversar sobre a criação literária com a incrível poeta e artista visual Sonia Sultuane e, no último dia, contar o processo de escrita do meu romance A Cabeça do Santo na Feira do Livro de Maputo.

Meus alunos moçambicanos escreveram crônicas sobre o que consideram seu lugar preferido no mundo: a casa do nascimento, a sala da avó, os sonhos, o céu. Levantavam e liam em voz alta, um depois dos outros, como um balé, como se tivéssemos ensaiado uma sessão de encantamento. Com Sonia e com a plateia dividi alguns pensamentos sobre a vida dedicada à criação, esse chamado que não negamos, que levamos adiante e que nos salva diariamente.

A Feira do Livro de Maputo acontece em um jardim a céu aberto, uma biblioteca verde e infinita. Sentada sob o sol, feliz como se eu fosse uma acácia, contei como a cabeça do Santo Antônio de Caridade conquistou Gabriel García Márquez e virou livro. Confessei que todos os dias, antes de escrever, eu lia um trecho dos romances Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do Mia Couto e O Vendedor de Passados, do José Eduardo Agualusa. Era um ritual de consagração da inspiração, benção para o meu trabalho, um barco que puxava o caminho dos verbos e nomes.

Os dois, Mia e Agualusa, estavam à minha frente, assistindo à minha palestra, rindo das graças que sempre digo, pois nasci pactuada com o riso e a alegria. Em seguida Mia Couto falou ao microfone e disse o quanto gostou de ler o Cabeça do Santo, com o entusiasmo que sentia das grandes vozes que vinham do Brasil. Tive a sorte de contar com a sensibilidade do Marcos Paulo Drummond, cearense, que estava na plateia e registrou tudo. Não fosse ele, juraria que foi delírio. Por mais que eu seja uma sonhadora que tropeça em nuvens, eu não seria capaz de imaginar isso.

Quando eu era pequena e colocava o ouvido no búzio que ganhei do Ary, sonhava em ser como ele, trabalhar viajando, andar pelo mundo deixando pedaços da minha alma.

Ser turista não teria tanta graça, melhor assim. Ir por trabalho, por missão, era meu pedido. Pois cumpriu-se. Voltei com mais coisas para contar, as bênçãos de dois mestres por quem tenho grande amor, um livro novo quase pronto e o coração macio e manso aguardando os próximos caminhos.

Foto do Socorro Acioli

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