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O mundo, os mundos e a ideia de fim
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

O mundo, os mundos e a ideia de fim

Tipo Crônica

Talvez um dos ganhos possíveis da grave crise que vivemos no Brasil seja, enfim, a valorização da nossa voz ancestral. Crise política, moral, social, colapso da natureza. Lideranças indígenas estão sendo brutalmente assassinadas. Suas mortes amplificam a urgência de ouvir o que precisamos aprender com elas e eles, cerca de 250 povos e aproximadamente 900 mil pessoas que representam os habitantes originais do Brasil. Precisamos calar e escutar.

Em silêncio, tenho pensando muito nas palavras de Ailton Krenak. Ouvi falar dele pela primeira vez nos anos 1990, por sua amizade com Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde. A Fundação Casa Grande, em Nova Olinda, Ceará, contou com o apoio de Krenak em muitos aspectos, sobretudo na construção de uma consciência história e antropológica, a alma da Casa Grande. O vínculo entre os Krenak e os Kariri já se construía desde então, mas ele ainda não era conhecido como merecia.

Hoje Ailton Krenak tem lotado cada vez mais eventos no Brasil inteiro e isso é um alento. Seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, publicado pela Companhia das Letras, é um sinal de luz a nos livrar da absurda escuridão que compartilhamos, uns esbarrando nos outros. Como ele mesmo diz, não foi um livro escrito, mas falado. É resultado da transcrição de três conferências de Krenak, defendendo algumas ideias básicas sobre a relação dos seres humanos com a natureza e a ideia de fim de mundo.

O primeiro efeito da leitura é ter a perspectiva da ignorância histórica que vivemos ao longo dos anos, das costas viradas para os reais donos da terra brasileira e sobretudo da negação adoecedora da nossa origem. O segundo efeito é entender nosso tempo como um "criador de ausências". Falta tudo o tempo todo porque há uma máquina trabalhando para isso, para gerar a necessidade do desnecessário. E o afastamento da essência é corrosivo. Histórias são essências. Música, arte, fogo, natureza. Perder o essencial é um sintoma grave, em pessoas, em nações, na consciência coletiva.

"O que aprendi ao longo dessas décadas, diz Krenak, é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos de nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência da Terra não suportar nossa demanda. Como disse o pajé yanomami Davi Kopenawa, o mundo acredita que tudo é mercadoria, a ponto de projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar. A experiência das pessoas em diferentes lugares o mundo se projeta na mercadoria, significando que ela é tudo que está fora de nós". As histórias estão dentro. Nunca foi tão necessário ouvir, contar e criar narrativas para nossa reconstrução.

A ideia de fim de mundo costuma ser associada ao espaço e tempo simbólico de uma guerra, um dia, uma explosão com hora marcada. Mas talvez o fim do mundo seja a queda lenta e diária em um abismo e Krenak nos pergunta: "quem disse que a gente não pode cair? Quem disse que a gente já não caiu?". Alguns mundos já acabaram. Outros recomeçam sempre. E a ideia de fim pode ser traduzida nas pequenas mortes que estamos vivendo, dos direitos, das ideias, das certezas. A esperança de Krenak, que deve também ser a nossa, está em restaurar a alegria de estar vivo. Daí virá, sejamos otimistas, uma nova maneira de encontrar soluções e interromper a queda.

São ideias, lampejos. É a nossa grande chance.

Foto do Socorro Acioli

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