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Quando a Terra era redonda
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Quando a Terra era redonda

Tipo Crônica

O escritor goiano José J. Veiga, um dos melhores escritores brasileiros, está sendo redescoberto por uma nova geração de leitores graças às edições cuidadosas da Companhia das Letras. Estive dedicada a ler tudo que produziu para escrever o ensaio que acompanhará a edição de seus contos completos e comemoro a alegria de saber que este gênio será mais lido e conhecido. Um dos meus critérios de qualidade de leitura está no meu gesto natural de parar em um momento qualquer do texto, fechar o livro ou olhar para o outro lado, respirar fundo e exclamar alguma coisa com ênfase expressar minha estupefação. É raro. Com a leitura de Veiga aconteceu o tempo todo.

Sua obra costuma ser citada quando alguém procura identificar e classificar os autores que fizeram algo próximo ao Realismo Mágico no Brasil, mas ele mesmo detestava o rótulo. A prosa de Veiga tem características muito peculiares e dificilmente poderia ser comparada ou colocada em uma categoria específica. Ele escreve sobre cidades pequenas do interior e coisas que acontecem de repente, sem explicação. O uso quase total do narrador em primeira pessoa aproxima muito os textos dos leitores e é fácil mergulhar nos livros sem ver o tempo passar.

O crítico Silviano Santiago, leitor entusiasmado da obra de Veiga, analisou muitos de seus contos à luz da psicanálise. Há uma profusão de crianças contando histórias, há sonhos, há camadas de amor e dor e tudo isso leva o leitor ao choro e ao riso. Talvez o seu texto mais conhecido seja A máquina extraviada, quando uma pacata cidade recebe um caminhão de mudanças que deposita um trambolho sem explicação e sem necessidade no meio da rua. Enquanto os personagens tentam entender, lidar e conviver com a tal máquina sem função ou propósito, há uma camada de texto que nos leva às máquinas extraviadas das nossas vidas, as coisas que chegam sem avisar para mudar tudo. Para o bem e para o mal.

Um dos grandes talentos de Veiga são as suas primeiras frases, a maneira de começar. Quase engasguei de riso ao ler o título de um dos contos: Quando a Terra era redonda. Eis o primeiro parágrafo:

"Difícil acreditar que esta parte da Terra já foi redonda, mas os indícios estão aí, e aumentam a cada dia. Verdade que nem todo mundo os percebe, para isso é preciso uma curiosidade quase maníaca e um faro muito especial, como o daqueles homens que, segundo a lenda, passavam a vida escavando ruínas e juntando pedaços de objetos e utensílios antigos para deduzir deles como teria sido a vida humana em eras já esquecidas".

Difícil acreditar que um conto escrito em 1980, fundado no humor, na inteligência, no recurso de chamar a ciência de lenda, seja atual para nós. Difícil acreditar que estamos divididos entre Terraplanistas e Terrabolistas nessa altura do campeonato. Dr. Freud disse que os escritores têm o dom de antecipar as questões da humanidade, mas essa aí foi demais. Não sei o que José J. Veiga diria disso se estivesse vivo. Seria entrevistado, convidado para festas literárias na tentativa de explicar como isso lhe ocorreu em 1980 como anedota e agora é nossa realidade em 2019. Ele não saberia dizer. Ninguém sabe como viemos parar aqui. Ao menos sabemos que a Literatura antecipa as coisas, nos prepara de alguma forma para o absurdo. Tenho fé, muita fé, que é a Literatura que está nos salvando desse pesadelo e escaparemos são e salvos correndo felizes pela face da Terra - que é redonda, sim, pelo amor de Veiga.

Foto do Socorro Acioli

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