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As coisas que perdemos no fogo
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

As coisas que perdemos no fogo

Tipo Crônica

Uma das coisas que impressiona na literatura argentina contemporânea é o fato de que alguns autores conseguem sustentar a força narrativa dos seus antecessores, os canônicos inclusive. Os escritores portenhos continuam aumentando nosso mapa de interesses literários, mostram Buenos Aires em detalhes, camadas e profundidade como fez Borges, Silvina Ocampo, Roberto Arlt, dentre outros. A relação entre a literatura e a cidade foi muito bem detalhada no guia Buenos Aires, Livro Aberto, de João Correia Filho, por exemplo.

Sobre a nova geração de prosadores argentinos, Mariana Enriquez é um dos nomes mais conhecidos e me impactou absurdamente. Começou sua carreira em 1994, quando lançou Bajar es lo peor, um romance. Levou dez anos para voltar a publicar e foi com o livro de contos As coisas que perdemos no fogo (lançado no Brasil pela Editora Intrínseca) que ficou conhecida em vários países.

Escreveu também um ensaio biográfico sobre Silvina Ocampo, outros livros de contos e romances e ainda um volume de crônicas sobre suas visitas a cemitérios no mundo inteiro. Sua resposta sobre a possível morbidez do hábito tem a coragem que marca sua obra:

"Para as pessoas da minha geração, que cresceram no clima mórbido da pós-ditadura lendo notícias explícitas sobre torturas, sequestros e crianças apropriadas, o que dá medo não é a tumba, mas a falta dela, os corpos não identificados jogados em valas comuns. Um cemitério onde há mortos com nomes e datas é um lugar que me tranquiliza", disse em entrevista ao Suplemento Pernambuco.

A minha porta de entrada para a obra de Mariana Enriquez foi o livro As coisas que perdemos no fogo, onze contos. Depois de concluir a leitura, procurei entrevistas de Mariana na internet para ver o rosto da pessoa que escreveu aquilo tudo. Sempre séria, poucos sorrisos, ela explica que é um livro de terror urbano a partir de coisas reais: doença mental, lugares assombrados pelos horrores da ditadura, moradores de rua, casas abandonadas, crimes nunca esquecidos: está tudo lá, em Buenos Aires. É a realidade.

A legião de leitores que Mariana Enriquez tem pelo mundo costuma dizer que os personagens são inesquecíveis e que ficam marcados na memória para sempre. Confirmo. E isso acontece pela forma como ela escreve, o tema não basta. Mariana faz uma prosa sem pretensões de explicar, causar efeitos, não há artifícios visíveis, não há a intenção clara de chocar. Há, isso sim, uma ideia muito bem construída dando alicerce ao edifício do livro.

As casas são personagens em quase todos os contos. A pousada que já foi um prédio militar. A casa de Adela. A casa alugada. A casa abandonada dos avós. O fogo e os animais também são elementos recorrentes. O lado obscuro de Buenos Aires é uma metáfora das partes da vida que em geral se tenta esquecer, viver sem lembrar que existem.

O gosto de ler contos de terror e horror às vezes pode ser explicado pelo alívio ao final: não é real, não é comigo, não aconteceu. O problema é que nos contos de Mariana muitas vezes aconteceu, sim. Ou ao menos tem uma base nas noticias de jornal, na verdade. Acontecem dessas coisas horrendas mesmo que a gente não queira. Mariana sustenta que sua opção pelo terror como gênero literário é uma decisão política, pois vive em um país que amargou um dos piores regimes ditatoriais da América Latina. Há desaparecidos por toda parte. Transformar isso em literatura de horror é catarse, transformação. Ela explica também que leu muito do terror anglo-saxão para construir suas tramas, daí sua excelência técnica na escrita do seu horror argentino. Defendo que é preciso desmistificar o gênero. A literatura também é feita com fogo e coisas perdidas.

Foto do Socorro Acioli

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