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As pessoas em dobro
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

As pessoas em dobro

Tipo Crônica

É fascinante a possibilidade da existência de duas pessoas iguais. Que fantástico dividir o ventre da mãe, compartilhar todas as fases de mórula, blástula, gástrula, formar pés e mãos, olhos, espinha dorsal, tudo praticamente no mesmo minuto que seu par. E passar tanto tempo ali, nascer na mesma hora, seguir na vida passo a passo tendo uma sombra, um duplo, um outro, um dobro de si. Uma dobra.

Quando crescem na mesma casa, com a mesma família, acontecem as histórias insólitas dos pressentimentos e sensações. Um sabe se o outro está triste ou feliz. Sentem no corpo o que o outro está sentindo: fome, prazer, sede, medo. Adoecem juntos, ficam curados juntos, ou um blinda o outro da dor e sofrimento.

Por esse fascínio, eu também adoro quando os duplos aparecem na literatura. O melhor conto de Jorge Luis Borges, na minha opinião, é justamente O outro, quando o narrador encontra com ele mesmo, separados por muitos anos. Dostoiévski também tratou disso no Duplo e inspirou José Saramago a escrever O homem duplicado. É um tema fértil.

Soube, um dia desses, da história de um homem que sempre que bebe um pouco a mais reclama o fato de ter sido enganado. Conheceu uma moça, achou bonita, marcou um encontro. Começou um namoro, que virou casamento e só muitos anos depois soube que aquela que sua verdadeira paixão mandou a gêmea em seu lugar. Se estiver bêbado e olhar para a cunhada, começa a cantilena do engodo.

Lembro da primeira vez que vi duas gêmeas. Eram primas distantes da minha avó, moravam no Rio Grande do Norte e vieram nos visitar em Fortaleza. Iguais em tudo. Sapatos, meias, vestidos, laços nos cabelos, caras de ruindade. Fomos brincar enquanto os adultos conversavam e minha avó contava que todo mundo correu quando ouviu o choro trifásico. As três chorando. Quando a mãe perguntou, as duas responderam em coro:

- Ela bateu na gente!

Foi espantoso para a minha avó porque eu era uma criança santa, segundo ela. Besta, apanhava, levava mordida, tímida, vivia rezando ou lendo no quarto. Jamais violenta. Quando ela me perguntou o que tinha acontecido, me dando a chance de apresentar minha versão, eu confirmei:

- Uma bateu em mim. Eu não sabia qual era e bati nas duas.

O que elas fizeram foi tortura psicológica, na verdade, mas eu me saí bem. Semana passada contei essa história para minha filha caçula, que agora pede que eu conte de novo, de novo, de novo, todas as noites. Tenho que esticar os fatos, os detalhes todos. Ontem ela me pediu uma coisa surpreendente:

- Quero ver as gêmeas, disse decidida.

Obviamente eu não tenho foto alguma dessas criaturas, mas ela insistiu. Foi o jeito pesquisar na internet e mostrar uma imagem que não é a legítima, mas mantém a atmosfera de pânico que vivi: as gêmeas do filme O Iluminado. Ela acreditou. Ficou chocada com a cara das meninas. Hoje vou inventar histórias de gêmeos bonzinhos, engraçados, divertidos. Não sei se consigo superar a realidade. Cá pra nós: apanhar de uma e bater nas duas foi genial.

Foto do Socorro Acioli

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