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Aluada
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Aluada

Tipo Crônica

Um mês antes do meu aniversário eu começo a ganhar presentes, na razão de um por dia. Na verdade eu ganho sempre, o ano todo, mas em fevereiro fica mais animado. Lembro dos aniversários da infância, a festa concentrada na sala, a cama com colcha nova e todos os presentes expostos em cima dos seus respectivos papéis. A foto clássica de todos os anos. A alegria da infância preservada a cada presente novo, até hoje, como se fosse tão antigamente.

O que mais ganho são livros. Em segundo lugar vem os cadernos e cadernetas. Mas esse ano, pela primeira vez, ganhei uma cachaça. E não foi uma cachaça comum, comprada em supermercado. Primeiro porque exigiu esforço, já que veio do Maranhão a garrafinha da tal Tiquira. Segundo porque ela é lilás, tingida naturalmente com folhas do pé de tangerina, uma aguardente de mandioca. Curioso.

Ouvi a palavra tiquira pela primeira vez em uma conversa entre meus alunos, Camila e Victor Hugo, versados em assuntos maranhenses. Não basta a bebida ser de mandioca e lilás para garantir a sua estranheza. Há a lenda. O mito. A crendice. O causo. O absurdo. O que dizem é que ninguém pode molhar a cabeça quando bebe a tiquira. Não sei os detalhes, as regras do jogo, mas parece que é sério. Muito sério.

Segundo as explicações dos especialistas, quem bebe tiquira e molha a cabeça fica aluado ou aluada, como preferir. Demonstrei interesse em correr o risco. Victor Hugo assumiu a missão e conseguiu a Tiquira pra mim. Está aqui, na minha frente e eu preciso pensar até que ponto meu futuro está em jogo. Sou mãe de família, tenho duas filhas pra criar. Até onde vai esse aluamento, se a lenda for real?

Consultei o Dicionário Informal, o melhor para um caso como esse. Aluado é o particípio de aluar. Pessoa que ficou doida, fanática. Adoidado, malucão, desatento, abilolado. Distraído. Exemplo de uso: "presta atenção, menino aluado". Na música Milagreiro, do Djavan, o verbo aparece. Em Portugal, aluado significa não estar atento por introspeção ou incapacidade temporária de focalização na realidade. Outro exemplo de uso: "Hoje o José Antônio está aluado, nem adianta tentar explicar para ele". Por fim, alguém diz no Dicionário Informal que aluado é quem vive no mundo da Lua. Dizem muitas coisas lá, tudo perigoso demais.

A tiquira é uma invenção dos povos indígenas desde os tempos pré-colombianos. A Camila tinha dito que a mandioca era mastigada para fermentar e eu duvidei, mas é verdade. É parente do cauim, do mocororó, deve mesmo ser mágica. Não duvido que molhar a cabeça seja algum tipo de ritual de transporte. São coisas que a gente só sabe testando.

Para o ritual, acho prudente marcar em noite Lua Cheia, convocar a equipe maranhense, deixar um testamento pronto, escrever algumas cartas com as verdades que precisam ser ditas, tomar todas as providências e garantir que a vida possa seguir caso o aluamento aconteça. Ou talvez seja melhor não arriscar, deixar a garrafa lilás enfeitando o armário. Não é nada mal ter uma passagem para a Lua guardada em casa, nunca se sabe quando poderá ser útil.

Foto do Socorro Acioli

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