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Violento ímpeto de vida
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Violento ímpeto de vida

Tipo Crônica

Celebremos os quarenta e cinco anos de publicação do livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar - um autor tão brasileiro que nasceu em Pindorama, a palavra que nomeia o Brasil pré-Cabralino. Um orgulho tão nosso que levou o nome do Brasil para mais de quinze países e venceu o Prêmio Camões pela maestria no uso literário da língua portuguesa.

A obra completa de Raduan Nassar coube em um único volume de quase quinhentas páginas, com capa de tecido vermelho, que eu amo e cuido com respeito e quase devoção. É um dos exemplares mais preciosos da minha estante. Caber tudo em um objeto-livro só diz muito sobre o uso das palavras e o projeto literário de Raduan.

É do conhecimento geral que ele escreveu apenas três livros: Lavoura Arcaica, Um copo de cólera e Menina a caminho. Dois romances e um livro de contos. No exemplar da sua obra completa ainda temos mais uma "safrinha" de dois contos e um ensaio que foram publicados no meio do caminho. Para os tempos de hoje isso é pura rebeldia, quase contravenção.

Raduan decidiu parar de escrever. Cumpriu a decisão. Resolveu dedicar o tempo à sua fazenda, aos bichos e à terra, nunca mais soubemos de nada inédito ou de alguma produção muito particular. Tenho curiosidade de saber se ele conseguiu livrar-se de verdade da "bendita mania de contar", como batizou Gabriel García Márquez. Não acredito que seja totalmente possível domar a escrita que começa na alma.

Por outro lado é fácil entender o cansaço com o que está ao redor dos livros. A literatura pura, os momentos de solidão com a palavra, isso é sublime. Difícil é lidar com os processos posteriores, que estão cada vez mais complicados.

Raduan vem de uma tradição de leituras fundadoras do conceito de humanidade: a Bíblia, o Alcorão, as Mil e uma Noites. Seu olhar para o mundo vem do Oriente e atravessa homens e mulheres da direita para a esquerda. Esse é um dos motivos de ser uma obra inesgotável, cada leitura do Lavoura Arcaica é outra, o livro tem uma movimentação secreta dentro dele, coisas escondidas que vão aparecendo com o passar dos anos e da maturidade do leitor.

Do meu repertório de leituras, desconheço um livro brasileiro com um começo mais bonito. As primeiras sessenta e uma palavras do Lavoura Arcaica eu já devo ter lido uma centena de vezes. Em voz alta. É um texto perfeito para ler para alguém, respeitando a desordem de suas vírgulas e do fluxo de consciência do André, o personagem.

O arcaico tem a força de transportar. Esse livro é um percurso sem volta e foi escrito com o preciosismo que não combina com pressa. Escritores atentos deveriam observar os inúmeros ensinamentos de Raduan. É preciso construir o edifício sobre pedra forte. Leva tempo. Exige muito do violento ímpeto da vida, energia e pausa. Não precisa ser imenso, apressado, agoniado. O sublime vem da alma. A festa dos quarenta e cinco anos deste livro catedral merece o nosso aplauso.

Foto do Socorro Acioli

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