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Fragilidade e força
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Fragilidade e força

Tipo Crônica

Quando li o Ensaio sobre a Cegueira pela primeira vez, lembro de ter me angustiado com a rapidez no contágio da doença que deixou uma cidade inteira sem enxergar. A única que escapou foi uma mulher, carregando o peso imenso da lucidez.

Há uma metáfora na cegueira criada por José Saramago, uma certeza de que não estamos reparando bem no que está ao nosso lado e o alerta de que as consequências disso seriam catastróficas. Estão sendo.

Viver sob a sombra do coronavírus parece uma distopia. Um vírus se espalha pelo mundo em alguns meses gerando pânico, fechando escolas, universidades, museus, locais públicos, bloqueando fronteiras, cancelando eventos, aulas, reuniões. Os descolamentos são proibidos - logo agora, que está cada vez mais fácil conhecer os cinco continentes. A velocidade das notícias é proporcional à incerteza, não dá tempo de confirmar, checar nada, vamos seguindo como for possível.

Quais são as fragilidades e as forças do nosso tempo? Até poucos dias a facilidade de mudar de um país para o outro era um dos poderes que comandava o mundo. Não é mais, estamos obrigados a parar e ficarmos quietos, imóveis, a olharmos para dentro das nossas casas. A nossa maior fragilidade, hoje, é um vírus invisível. A força para lutar contra ele é desigual.

Em outro romance de Saramago, As Intermitências da Morte, um fenômeno coletivo sacode as bases do mundo: a Morte faz greve e parar de interromper as vidas. Há a felicidade da vida eterna, a princípio, para depois chegar o entendimento de que o fim é necessário para que a ordem das coisas se cumpra.

Fenômenos coletivos ensinam que um dos poderes da condição humana, de vivermos em grupos, é a palavra. O tal Corona infecta duas vezes: primeiro invade o nosso léxico, vira parte da rotina. Quantas vezes dizemos o nome dele por dia? Ou lemos? Ou digitamos em mensagens? Perdemos a conta, estamos tentando entender e nada melhor do que falar, falar, até extrair algum sentido de tudo.

A segunda contaminação é a do corpo, o adoecimento, a transformação de uma vida normal em um festival de horrores, ser vetor de uma doença sabendo que, para alguns perfis, pode ser fatal. E o que fazer pra evitar? Lavar mãos. Evitar beijos, abraços e toques. Logo nós, brasileiros, que gostamos tanto do contato físico. Pois não dá, estamos em quarentena nos gestos de afeto. Voltamos ao começo, às origens. O hábito franco de ter as mãos limpas.

Só não podemos parar de olhar. De enxergar. As relações, as conversas, o amor, as músicas, os livros, nada disso foi cancelado. No fim das contas, só fica em pé o que é sólido. E se faltar internet? Quem estará ao nosso lado para conversar e conviver se a internet também for afetada em um próximo capítulo da distopia? Estamos prontos para retomar ao projeto de sermos humanos? Forte é olhar nos olhos e estar perto. "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara". Saramago intuía o que estava por vir.

Foto do Socorro Acioli

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