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Da ordem do imponderável
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Da ordem do imponderável

Tipo Crônica

Aquilo que não pode ser calculado, nem previsto, mas cujo efeito é determinante. Isso é o imponderável. Eis o simulacro de fim do mundo e estamos nele. Falei ontem com minha amiga Galeara e ela me disse que achava adequado usar essa expressão que ouviu um dia, achou muito bonita, mas não cabia em nada até então: da ordem do imponderável.

O léxico da quarentena fica entre imponderável, insólito, surreal, absurdo, inacreditável, é o que dizem o tempo todo sobre essa situação. Os pessimistas estão desesperados, aguardando o pior, somando as mortes, disparando informações de todo tipo, falsas, verdadeiras, vivendo uma versão psicológica da epidemia. No extremo oposto estão os que acreditam no coronavírus como uma cura coletiva da humanidade, na função espiritual de limpeza kármica, nossas almas sendo limpas como os canais de Veneza.

E entre todos está a Galeara, que no meio da conversa sobre a ordem do imponderável confessou o desejo de virar uma abelha e visitar os amigos, aqueles que estavam sempre na sua casa e que fazem muita falta. Lembrei de um livro que ganhei recentemente, Colmeia: Nossa história com abelhas, da Bee Wilson, pesquisadora do departamento de História do Pensamento do St John's College, em Cambridge.

Quem me deu foi meu amigo Abrahão Sampaio, um filósofo apaixonado por abelhas. Logo no primeiro contato, abri por acaso um trecho sobre a relação de Tolstói com as colmeias, já declarada na apresentação do Guerra e Paz. Ele lista as possibilidades de compreensão da colmeia pelas crianças, poetas, apicultores, botânicos, tentando traduzir o sentido final da vida das abelhas.

E sobre isso, Tolstói diz: "Mas o objetivo final da abelha não se resume a um ou outro, ou a um terceiro propósito, que a inteligência humana for capaz de descobrir. Quanto mais elevada for a inteligência do homem na descoberta desses alvos, mais óbvio se torna que o alvo final está fora do nosso alcance. Tudo que está ao alcance do homem é a observação da analogia da vida das abelhas com outras manifestações da vida".

O punctum de fascínio desse livro para mim foi a ilustração do trabalho de François Huber, que desenhou, parte a parte, a arquitetura dos favos de mel. Perfeição de simetria e encaixe, feito por criaturas tão minúsculas. Isso também é da ordem do imponderável. A comunidade das abelhas foi usada como modelo para a sociedade humana por Aristóteles, Platão, Virgílio, Sêneca, Erasmo, Shakespeare, Marx e Tósltoi.

Aprendemos quase nada.

Talvez uma das bases dessa ideia seja a de que somos coletivos e só seremos minimamente felizes quando chegar até nós a consciência de coletividade e união que as abelhas já sabem, desde sempre. A História atesta agora nossos erros pela forma como estamos atravessando a tragédia mundial da Covid-19. Vencidos por um vírus pelo desentendimento de como devemos funcionar. Precisamos aprender a viver como as abelhas, cuidar da colmeia, entender os ciclos, trabalhar em grupo. Agora é hora de cada um ficar no seu favo, repensar o essencial, o necessário, reinventar os modos de vida para colher o mel no tempo certo. Que tenhamos a paz incansável das abelhas.

 

Foto do Socorro Acioli

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