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Apátridas
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Apátridas

Tipo Crônica

Acabei de ler um livro excelente. No meio da pandemia, pandemônio e tragédia, sim, porque é preciso manter a engrenagem literária viva, ler e falar de livros, prosseguir, manter a sanidade. Chama-se Apátridas, escrito pelo ensaísta e crítico literário Alejandro Chacoff. Um portentoso romance de estreia, escrito com uma mão muito segura e que correu para o topo da minha infinita lista de leituras porque o título me atraiu.

O dicionário informa que apátrida é o indivíduo que não é titular de qualquer nacionalidade e lista os motivos possíveis para isso. No romance é proferido como algo negativo, uma acusação de um dos personagens contra o narrador, um rapaz filho de mãe brasileira, pai chileno, que morou nos Estados Unidos e volta ao Brasil após a separação dos pais. Apátrida, na boca desse tio que acusa, é alguém sem chão, sem um nome para o sangue, sem lugar no mundo.

O protagonista convive durante todo o livro com a ausência do pai e isso é tanto central quanto metafórico. Apátrida e órfão de um genitor vivo. Sua única possibilidade de presença é uma voz que reclama e chora ao telefone, uma lembrança esfumaçada de alguém que sempre ressurge com o papel de perturbar a ordem, ou a tentativa de ordem de sua vida. Um romance de formação, porque o leitor segue seu deslizar pela juventude como uma câmera acoplada ao seu ombro, vendo o que ele vê.

A mãe é presente, uma mulher forte, professora universitária, que cresce aos poucos ao longo do livro para, perto do fim, protagonizar uma das cenas mais bonitas. O avô e seus envelopes. Os primos, os empregados, um desfile de brasileiros.

O dinheiro, as relações sociais no Brasil, o trabalho intelectual desvalorizado, o antropólogo estrangeiro que investiga a alma ancestral que apagamos, os resquícios de uma organização social escravocrata, está tudo ali: os elementos da busca por se entender brasileiro. Na escola que frequenta, enquanto assistem filmes de arte, outros meninos comentam as origens de seus antepassados. Um deles, descendente de alemão, fica incomodado quando um antropólogo (meu personagem favorito) diz que ele parece um guerreiro xavante, que joga futebol tão bem quanto os homens dessa nação. De fato sua mãe é de origem indígena, mas ele não quer ser índio, quer ser alemão. A confusão brasileira na boca de um menino.

A linguagem é polida, sofisticada na medida certa, impecável. A descrição de pessoas e lugares nunca é longa ou curta demais, nunca é cansativa. Porém a maior qualidade do romance, para mim, é a forma como o narrador observa as pessoas a partir das palavras escolhidas por cada um, o vocabulário pessoal. Nesse ponto me lembrou muito o Léxico Familiar, da Natalia Ginzburg e suas memórias de família na Itália. Nos dois casos, é a língua e a escolha das palavras que identifica um por um no seu relicário de personagens, que constrói um dicionário particular desse microcosmo.

É curioso ler esse livro justo agora. As fronteiras estão fechadas, é proibido circular de um país ao outro, mas nunca fomos tão uníssonos ao dizer a palavra Corona. Tão humanos na consciência de nossa vulnerabilidade. Apátridas, talvez, forçando violentamente um sentido transcendental para a palavra. Enquanto o vocabulário ao redor está adoecido, a literatura é a janela possível para algum alívio. Um livro após o outro, vamos sobrevivendo.

Foto do Socorro Acioli

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