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Dentro de abril
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Dentro de abril

Tipo Crônica

Sonhei com Guimarães Rosa me mandando reler Grande Sertão: veredas dentro de abril, usando exatamente essas palavras. Achei bonita a ideia de estar dentro de um mês. É o abril mais estranho de todos os abris das nossas vidas e estamos dentro dele como se fosse o nome de uma caverna. Obedeci à ordem, claro, porque não estamos em condições de negligenciar recados confiáveis.

Ver o sonho como mensagem nunca foi novidade, mas a leitura do recente Oráculo da Noite, livro do neurocientista Sidarta Ribeiro, consegue ampliar a compreensão sobre o poder dos sonhos para muito além do nosso limitadíssimo campo de visão. As coisas estão sempre mais ocultas do que visíveis, principalmente dentro de cada um. O momento é o ideal para começar um Sonhário, o livro particular dos nossos sonhos.

O que poderia acontecer de milagroso ao reler Grande Sertão: veredas durante um confinamento? Estou atenta. Marco frases, paro para pensar sobre elas enquanto abraço o livro. Pois logo na página dezenove o narrador diz, sem medo de errar: todo-o-mundo é louco. Se ser louco é estar fora das condições normais de vida, estamos mesmo assim. E isso é uma maneira de aprender.

Entrar no sertão é estar o mais perto possível da alma brasileira. Guimarães Rosa ensinou muito sobre o Brasil. Foi dele o conto escolhido para o próximo clube de leitura virtual com meus alunos. Vamos conversar sobre A terceira margem do rio.

Talvez seja o conto mais bonito da literatura brasileira, repito sempre. Fez uma obra de arte com tão poucos personagens, sem grandes mirabolâncias, só olhando profundamente para cada palavra. É uma aula sobre o conto como gênero literário.

E lá está aquele pai, no meio do rio, nem se deixa levar pelo curso da água, nem aceita mais os pés na terra. Está ali, mas sem pertencer mais. De alguma forma estamos assim, nossas casas são essas canoas nas terceiras margens das nossas vidas. E quem não tem casa, com sobreviverá à deriva
nesse rio?

Entre o sertão e o rio de Rosa, recebo notícias de outros lugares do mundo, os amigos espalhados pelo mapa contando sobre o atravessamento. E a doença vai chegando nos amigos, na querida amiga francesa. Ela me conta que parou de sentir o cheiro das coisas. Que já está recuperada, mas a capacidade olfativa nunca voltou.

As cenas da Itália que ficaram marcadas na memória se alternam entre os músicos nas sacadas, cantando e os caminhões levando incontáveis corpos que sequer serão velados. O movimento da vida e da morte nos perturba. Buscamos lugares seguros, precisamos estar onde alguma paz nos alcança. Estou no sertão ouvindo Riobaldo me dizer que Diadorim é sua neblina. Cada um tem a neblina que lhe cabe.

É um privilégio ter um refúgio. Mais ainda: é um privilégio ser o abrigo de alguém, da maneira que for possível. Ser um livro na mão do outro é uma honra. Dentro de abril, atravessaremos essa noite escura. É hora de pensar nas flores de maio.

 

Foto do Socorro Acioli

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