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A lição de Munique
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A lição de Munique

Tipo Crônica

Todos os dias a minha filha de quatro anos pergunta se o coronavírus já foi embora. Eu respondo que não e emendo com alguma proposta divertida para as horas que teremos a seguir. Pode ser colocar a roupa aos cuidados da Adele, nome da máquina de lavar. Do jeito que a gente faz é animado porque Adele canta quando termina tudo.

Uma ideia genial para aliviar a rotina das donas de casa.

Quase todo dia tem um bolo: de maçã, banana, cenoura. Tem lasanha, tem farofa, porque a criança não sabe o que é low carb e tem todo direito de escolher o cardápio de confinamento. Assim seguimos, inventando o que fazer com as horas do dia de uma pequena muito esperta que sente falta da sua rotina, da professora, dos colegas, das coisas que só a escola proporciona e a família não consegue substituir.

Acontece que o trabalho e as responsabilidades dos adultos não foram interrompidos, só mudaram de lugar e modo. Quem tem filhos pequenos, em muitos casos, tem beirado o desespero e os motivos são extremamente graves quando a pandemia atinge a renda familiar.

Um dos alívios veio com os contadores de histórias, que começaram a gravar vídeos narrando no YouTube para as crianças ainda não alfabetizadas quando os pais precisam trabalhar. Acho que a essa altura da guerra contra a morte, já entendemos que a Internet não é inimiga de ninguém, isso é um pensamento que o coronavírus enterrou.

Algumas famílias estão recorrendo aos aparelhos eletrônicos nesse momento, a sabedoria está em saber como fazer. É lá, na Internet, que estão os contadores de histórias, narrando os relatos ancestrais, retomando a oralidade, somando forças com os livros na construção das mentalidades, da criatividade, da força do espírito, da invenção.

Tenho pensado muito na Jella Lepman, uma alemã que foi contratada para ajudar mulheres na recuperação das suas vidas após a Segunda Guerra Mundial. Ela percorreu as cidades destruídas da Alemanha para entrevistar viúvas de guerra e voltou com um diagnóstico: precisamos refazer as bibliotecas. Escreveu para editores do mundo inteiro pedindo doações de livros e construiu o que hoje é o maior acervo de literatura infantil e juvenil do mundo.

Além de devolver às crianças a possibilidade de ler, preencher as horas com a fabulação e a habilidade de sonhar, ela queria também que aquela geração aprendesse cedo o respeito às diferenças de raça, credo, idioma, cor de pele, hábitos, formas de vida. E assim criou a Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, que funciona em um castelo e onde eu tive a honra de ser pesquisadora no ano de 2007.

Hoje eu pensei nisso: sairemos da pandemia andando sobre escombros e levando nas mãos nossas crianças. O que estamos aprendendo para ensinar a elas? A maior lição do vírus da coroa é que o ser humano precisa criar, inventar e reinventar a vida. São as narrativas que nos ensinam isso, desde cedo. Tudo está conectado pela palavra. Seremos salvos pelas palavras.

Foto do Socorro Acioli

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