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Comportamento virtual
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Comportamento virtual

Uma dentre as inúmeras reflexões que podemos desenvolver a partir desse período de quarentena diz respeito à dependência, cada vez mais entranhada, que adquirimos em relação à tecnologia. Nesse âmbito, que por si é bem vasto (envolvendo comércio, entretenimento, arte, aprendizagem e tantas áreas mais), o aspecto comportamental chama a atenção, cria um alerta. Poderia ser questão óbvia, discernir as fronteiras entre o real e o virtual - mas talvez seja algo profundamente sutil, para certas pessoas.

Existe um tipo de malícia que as redes sociais exigem. Elas são uma vitrine onde você expõe suas características, seus talentos - não necessariamente para obter retorno financeiro, embora sempre haja a expectativa de algum lucro, ainda que de teor emocional, psíquico. Entretanto, ali estão vitrines. E muita gente as confunde com a própria casa, escancarando sentimentos e a mais crua intimidade - como se os interlocutores não estivessem do outro lado virtual, e sim dentro da sala, convidados próximos tomando um cafezinho, partilhando ideias ou desabafos.

Os ingênuos e inseguros deixam cair essa quarta parede, esquecem que mídias são espaços de representação. Há uma performance específica para esses ambientes, tanto quanto para o lugar de uma profissão. O imbróglio com os limites entre privado e público, na era atual, deve ter começado com o surgimento dos computadores domésticos - mas, no início, imagino que esta máquina devassava a intimidade tanto quanto um telefone fixo, digamos. O telefone móvel já rompe muitas fronteiras, permite que se carregue o outro, a voz do outro, para um cotidiano mais profundo: as ligações passam a ser longas, porque agora elas podem acompanhar as tarefas, ninguém precisa mais ficar parado, dedicado exclusivamente a uma conversa telefônica. Quando este telemóvel - o tal celular - ganha câmera e acesso à internet, então, a ilusão de que temos uma companhia através da máquina se intensifica.

Mas continua sendo ilusão. Ilusionismo. E talvez não se faça uma advertência importante às jovens gerações: "Isso é mágica. Pode encantar e divertir, porém não acredite completamente". Quem nasceu na fase pré-digital aprendeu isso porque acompanhou o processo de montagem desse espetáculo, assistiu a ensaios, observou as falhas progressivamente desaparecendo, memorizou os truques. Mas adolescentes e crianças entraram direto quando o show já estava acontecendo. Se ninguém lhes disser que se trata de uma representação, com suas estratégias específicas, os pobres inocentes vão achar que a cartola, sim, é um portal divino de onde saem coelhos, pombas, lenços. E podem passar a vida acreditando que a respiração equivale a um clique, e que conhecem uma pessoa porque acompanham seu perfil, curtem suas postagens, sabem o que ela pensa... Será, será?

Eu poderia me afogar no mar de exemplos que estão por aí, mostrando as consequências de ser ingênuo. Mas passo a bola - ou a boia - para vocês.

Foto do Tércia Montenegro

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