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O fundamento
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

O fundamento

Outro dia eu conversava com uma amiga, dizendo-lhe que já não sentia grandes impulsos de embelezamento doméstico; minha casa tem alguns enfeites, objetos e obras de arte que valorizo muito - mas atualmente, em vez de pensar em novos itens belos, estou concentrada no conforto funcional. Sem querer investigar até que ponto a quarentena interferiu no meu perfil de consumidora, ao mesmo tempo não resisto a uma pergunta: tornar-se prática, nesse sentido comum, é ser menos simbólica?

Provavelmente. O símbolo é inevitável à condição humana, sei disso por minha formação em letras e semiótica - mas também a psicanálise pensa dessa forma. E entretanto perseguimos (alguns filósofos aí inclusos) modos de driblar essa armadilha que a linguagem constitui, ao nos estruturar a uma distância ("segura", "impossível"?) do real. Creio que a dança e outras experiências físicas (o orgasmo, evidente) geram o contato com esse lado prático, essencial da humanidade, despojado de acessórios.

Óbvio que tudo o que passa pela mão humana é passível de ritualização, estética... simbolização, portanto. Mas os movimentos do corpo, assim como o seu contrário, a imobilidade do estado meditativo, funcionam para desligar um pouco a mente. Abandonamos, por um instante que seja, os penduricalhos cognitivos, apreciações, juízos, tudo isso que faz tanto barulho interno e oprime, memórias, expectativas que são como várias camadas de pano a cobrir o nosso eu primordial - pois que no mundo estamos sempre assim, avolumados por conceitos ou verdades, carregando opiniões como extravagantes enfeites que nos pesam no pescoço, nos pulsos, nas orelhas... e também andamos com os pés amarrados; dúvidas, receios ou tabus nos enlaçam a cada passo, além das obrigações que atrapalham: tropeçamos nelas, ferimos as pernas nessa selva áspera.

E tudo são símbolos, a própria maneira que uso para me referir é metafórica. São coisas alternativas ou postiças que nos agregaram, coisas que muitas vezes se tornam úteis, aliviadoras, até sublimes - a ponto de podermos considerá-las fundamentais.

Mas então, por um sobressalto que acontece através desse tipo de concentração no corpo ou no fôlego, percebemos. A nudez é o fundamento. O organismo, sem qualquer adereço, sem palavras. Algo semelhante ao vazio - mas que não se confunde com a paz ou o êxtase, sensações novamente simbolizadas. É o estar, desvelado. Corpo despido de interpretações. A existência, apenas.

Isso dura pouquíssimo. Quando evocamos a noção de tempo, é sinal de que já acabou. Mas mesmo que voltemos à rotina raciocinante, para interagir com as pessoas, usar máquinas etc, aquela percepção essencial nos mudou. Entendemos a "nostalgia de ser bicho", de que nos fala Lispector, somos cúmplices dela. E podemos lidar com os símbolos vendo como de fato eles são: substitutos, longe da origem.

 

Foto do Tércia Montenegro

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