Logo O POVO+
Um hippie tecno
Foto de Tércia Montenegro
clique para exibir bio do colunista

Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Um hippie tecno

Tipo Crônica

O músico e artista plástico David Byrne, no seu "Diários de bicicleta" (que foi uma viagem possível – e extremamente agradável – nesta quarentena), aborda inúmeros assuntos. Sob a proposta de compilar vivências em diversos países, através de turismo ou turnês, quando Byrne sempre encontra um modo de pedalar, seja em Manila ou Istambul, Salvador ou Berlim, o livro faz um percurso reflexivo variado. De questões urbanas e culturais a perspectivas históricas, artísticas e filosóficas, aprendemos a cada página. Eu poderia citar aqui muitos temas, mapeando os capítulos de Byrne – mas elejo um, em alerta sobretudo graças ao momento atual.
Ao tratar sobre a região do Vale do Silício, em São Francisco (EUA), o autor estabelece certo conceito à primeira vista estranho: o de um hippie tecno. Conforme sua percepção, os “jovens ponto-com” tinham, assim como a geração paz-e-amor, um interesse revolucionário em fazer algo que unisse todas as pessoas. “O livre-para-todos da blogosfera e a loucura total das coisas que as pessoas postam on line compartilham uma bela sensação de tanto faz. A sensação de liberdade anárquica permanece”, assinala.
Ora, essas podem ter sido iguais motivações de base, mas é inegável que a utopia nerd dos anos 1970 se transformou num meganegócio que apenas finge promover as possibilidades humanas livremente – na verdade, paga-se caro pelo acesso a informações, mídias, plataformas de reuniões remotas etc (não estou falando só no preço dos planos de internet, vocês me entendem). Com a pandemia de 2020, a vida virtual saiu favorecida: ainda mais pessoas agora devem pensar que presenças e paisagens reais são dispensáveis ou substituíveis.
Essa, acredito, é justamente a crença contrária à de um hippie.
Um hippie não prioriza alternativas práticas, “confortáveis” – especialmente se elas implicam em vigilância, monitoramento das atitudes.
O próprio Byrne comenta que, quando chegou a São Francisco na época da juventude, sentiu-se atraído pela visão hippie-eco-tech... mas acabou vagando com um amigo pelas ruas de Berkeley, tocando violino e ukulele. Entretanto, o estilo Woodstock terminou há tempo, alguém poderia dizer. Hoje os andarilhos utilizam GPS, os nômades já não são criaturas secretas... Concordo, porém imagino que uma nova tendência virá – um retorno ao rústico, pelo abuso total da tecnologia.
Depois de nos obrigarem a usar tantas máquinas e conexões artificiais, e nos forçarem a manipular softwares para tudo, chegaremos um dia à exaustão revoltosa. Faremos um gesto que nem precisa ser grandioso – e, claro, não será divulgado no Instagram. Simplesmente deixaremos o celular, a câmera, o carro, até mesmo as roupas, à beira de uma praia naturista. De lá sairemos com um tipo de sabedoria. Inigualável. Intraduzível. O trampolim da aventura.

Foto do Tércia Montenegro

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?