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Ouvir Ler
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Ouvir Ler

Tipo Crônica

Roger Chartier, num capítulo do terceiro volume da "História da vida privada", comenta como a leitura silenciosa é uma das práticas constitutivas da esfera particular. Entretanto, o seu advento não anulou o uso social que nos impulsiona a ler em voz alta: "(...) ler em grupos, ler por obrigação de trabalho ou por prazer são atos que não desaparecem com a revolução da leitura no silêncio e na intimidade", afirma. Parece bem acertado. Mesmo hoje, com uma pressão tecnológica que nos conduz a uma solidão quase patológica, persistem clubes de leitura, podemos recordar.

Mas talvez a maior parte das pessoas associe o ritual de ouvir ler (e também ler para os demais, por seu turno), ao período da infância. Meu pai, enquanto estudou num seminário, criança ainda, tinha de ler o martirológio em voz alta antes das refeições. Ele nunca esqueceu o milagre absurdo de São Dinis (aquela história de que, após decapitado, o santo pegou a própria cabeça e beijou-a), porque, à medida em que lia para o clero e os colegas, todos muito solenes, meu pai começou a rir, até que se descontrolou de tal maneira que ninguém podia ignorar o escândalo - com consequentes reprimendas, não muito graves, já que essas, ele tinha esquecido.

Na minha própria infância, a leitura antes de dormir era um ritual delicioso - e foi ali, pelas mudanças de voz que minha mãe adotava para marcar cada fala de personagem, que ganhei as primeiras noções sobre teatro. Depois, ao longo da vida, tive outras inúmeras ocasiões de ler: para os alunos, por exemplo (e para sua fruição, não somente como prévia explicativa). Muitos poemas marcaram vínculos de afeto, a partir da sala de aula.

De modo mais recente, o afastamento físico me leva a gravar áudios lendo trechos para amigos, em mensagens do whatsapp. A motivação é passional; sei que a pessoa vai gostar de conhecer tal fragmento, isso diz respeito a algo que conversamos, ou dialoga com uma piada antiga nossa - ou apenas quero que ela escute e me devolva com uma gravação de algo que está lendo... para que fiquemos lado a lado, unidos pela onda sonora.

Com um companheiro, também, sempre desejo o prazer da leitura partilhada... Após o amor e antes do sono, cada qual pega um livro, lê primeiro silenciosamente, os pés se encontrando sob o cobertor. Mas num instante qualquer, toma-se a iniciativa - "Escuta aqui essa passagem" - e os livros se mesclam; às linhas interrompidas colam-se outras, gerando cruzamentos insólitos. Essa é uma das experiências mais valiosas, porque envolve não apenas o texto, mas também o timbre. Eis a voz da pessoa amada transportando a potência literária, transformando-a em uso personalíssimo, pelas pausas, o sabor de sua pronúncia, o fôlego que reinaugura o momento divino, quando a palavra dita criou o mundo.

Foto do Tércia Montenegro

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