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Fichas
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

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Tipo Crônica

Dia de eleição, e você deve estar pensando que meu texto vai tratar de fichas criminais... Até poderia, mas escolhi a literatura, o que equivale a dizer: lido com ficções, uma categoria que a política não abarca (ou, pelo menos, não deveria). É bem verdade que os limites do surreal andam cada vez mais elásticos; extravasam para o cotidiano de um jeito tão reiterado que algumas pessoas se tornaram indiferentes. Eu, entretanto, defendo a capacidade de se espantar como um indicativo de saúde - então, talvez por um trocadilho divino encontrei um recente exemplo num questionário médico.

Havia uma ficha a preencher antes do exame. No início, perguntas de praxe: usa marca-passo, já fez cirurgias etc. Mas à medida que as questões se desenrolavam, um nível, digamos, de absurdité aparecia. Utiliza próteses móveis? Tem algum tipo de metal no corpo? Já teve obstruções arteriais? - eu começava a hesitar, de um jeito libriano-filosófico. Usa agulhas ou outro material de acupuntura? - pensei em sanguessugas, divaguei pela história da medicina, voltei ao questionário. Possui clipes ou válvulas na cabeça? - Mary Shelley surgiu, abraçada ao seu Frankenstein; afastei a imagem da mente: concentração! Fez tatuagem ou maquiagem definitiva? Usa cílios postiços?

Cheguei ao limite.

Descontrolei-me numa risada, que durou bem mais do que a polidez recomenda.

A partir daí, rumei definitivamente para outras possibilidades, desvairadas ou plausíveis, a depender de quem aplicasse o questionário. Infinitas fontes de pesquisa sociológica estão contidas nestas fichas médicas. Fetiches detetivescos pulsam nas gavetas, nas pastas arquivadas dos consultórios, repletas de confissões sobre os mais diversos temas. Conversei com meu amigo Urik Paiva, trocamos áudios cheios de hipóteses. Colocamos nossas próprias questões, de interesse urgente para o autoconhecimento ou a catalogação da humanidade.

Pratica danças folclóricas? Já teve contato com materiais radioativos ou com o kit gay? Põe açúcar no café ou prefere sem? Comeu frango ao curry ou observou "Moça com brinco de pérola" do Vermeer nas últimas duas horas? Tem superstições? Enxaquecas? Visitou o Geestenmuseum da Holanda na última década? Já cantou "O sole mio" no banho? E fora do banho? Utiliza xícaras ou outros itens de louça para fins sexuais? É poliglota? Possui polidactilia? Usa roupas de poliéster? Já sentiu câimbras no cabelo? Espasmos nas unhas?

A lista continua, e gosto de pensar que daria orgulho a Campos de Carvalho, pelo diálogo com certas páginas do seu "O púcaro búlgaro". E por falar nesse livro, se a Bulgária existe, o Brasil também (não precisamos de expedições para provar) - o que me leva à última pergunta, agora realista.

Você, que hoje foi votar, fez isso com sinceridade ou só porque era o jeito?

Foto do Tércia Montenegro

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