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Sete saias de filó
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Sete saias de filó

Tipo Crônica

“Pior do que achar uma barata é perdê-la”, já disse alguém, e pensei justamente nisso quando, após encontrar uma enorme na cozinha, perdi o seu paradeiro. Durante três ou quatro dias, na mesma hora noturna, flagrei o inseto na pia – mas bastava acender a luz ou me aproximar (usei também a estratégia de avanço na penumbra), para a barata se tornar incógnita.
Tentei apelar para o instinto caçador da minha gata, para que ela me ajudasse a localizar o inseto – mas, aos 16 anos, Gaia aposentou seu lado selvagem e só quer saber de mordomias. Em consideração a Kafka, eu preferia não adotar violências; afastei a ideia de uma chinelada mortal, mas queria ao menos que a barata aparecesse diante da porta, no lugar exato em que uma varrida a jogaria metros para fora do meu lar.
Enquanto eu lavava freneticamente armários e louça a cada manhã, cantarolava quase sem querer músicas infantis com a presença desse personagem: “Quem quer casar com a dona Baratinha/ que tem fita no cabelo/ e dinheiro na caixinha”, seguida por “A barata diz que tem/ sete saias de filó/ É mentira da barata/ Ela tem é uma só”. Talvez procurasse invocar, por algum tipo de encantamento lúdico, a criatura que, entretanto, obstinava-se em surgir apenas de noite.
Esse episódio aconteceu durante a quarentena mais rigorosa. Eu me acostumei a deixar na área de serviço bolsa, sapato, desinfetante, sacos para embalar a roupa com que vinha da rua etc. Quando precisava sair, me calçava nesse espaço, pegava a bolsa e a máscara... estava pronta para a luta!
A luta quase sempre era o supermercado, onde eu ficava durante o menor tempo possível, para evitar me expor a contágios. Naquele dia, então, com gestos apressados eu me preparava para pagar a conta; fui tirar a carteira, e de repente vi – a barata! – me olhando e balançando as anteninhas dentro da minha bolsa. O meu grito coincidiu com o pulo dela para fora – na verdade, voo. Ela não havia demonstrado, lá em casa, tal capacidade (e depois me senti muito grata por isso). A moça do caixa gritou logo em seguida a mim.
Tudo durou uma fração de segundos. Eram muitos arquétipos envolvidos: medos ancestrais, gritinhos de fragilidade feminina e um embalador de compras prontamente desafiado em seu lado viril. Ele saiu em disparada atrás da barata que, até onde vi, voou pelos corredores da loja rumo à seção de frios, arrancando mais notas agudas de mulheres que estavam no caminho.
Não soube do desfecho daquela perseguição. Devo confessar que torci pela fuga da barata? Ela tinha boas chances; pertence a uma espécie que resiste no mundo desde a pré-história – e afinal, ainda que de modo involuntário, eu havia me livrado dela com um truque inofensivo, simplesmente levando-a para fazer compras. Tanta canção a respeito de saias, fitas e dinheiro deve ter despertado sua cobiça, e daí para o esconderijo na bolsa foi um salto.
Nem G.H. teria imaginado um relacionamento assim, aposto.

 

 

Foto do Tércia Montenegro

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