Logo O POVO+
Experimentar
Foto de Tércia Montenegro
clique para exibir bio do colunista

Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Experimentar

Em recente palestra transmitida de modo remoto, o linguista Ugo Volli trouxe reflexões a partir do conceito de experiência, a partir do qual se chega a uma específica técnica narrativa. Todas as considerações em torno do que poderia representar um modo de ultrapassar análises textualistas me interessaram muitíssimo - mas o espaço de debate adequado para isso não é uma página de jornal, de modo que levanto aqui somente um ponto, ligado à própria palavra, experimentar. Essa arte do fazer, conforme Michel de Certeau, não parece estabilizada numa definição social nem pode se confundir com as "coisas do mundo".

Mantendo um sentido difuso tanto em conversações comuns quanto em abordagens científicas, a experiência aponta para uma zona pessoal inevitável. Como diz Ronald Laing no livro "The voice of experience", de 1982, "a experiência não é um fato objetivo (...). O efeito que produz sobre nós um fato objetivo não pode ser um fato objetivo. Os fatos não sonham". Porém, essa dimensão do sonho - que se mistura com as impressões individuais e intransferíveis de cada um(a) de nós - guarda certa previsibilidade, sem a qual o entendimento mútuo a respeito de qualquer situação seria inalcançável.

A margem do que é previsto pode ser traçada por hábitos sociais. Assim como um analisando (diz Volli), conforme uma velha anedota não despida de verdade, sonha de acordo com a orientação do seu psicanalista, vendo arquétipos se ele é junguiano, ou símbolos sexuais se é freudiano etc, também qualquer um(a) de nós ama, sente raiva, decide, tem fé etc, segundo um contexto cultural e linguístico: "A vida vivida não é menos cultural que as palavras escritas nos livros".

Entretanto, a experiência pode servir de trampolim para um indivíduo aprender algo além do corriqueiro. Se observamos a construção etimológica dessa palavra, recebemos uma lição importante: em todas as línguas neolatinas, o vocábulo deriva de experiri, um verbo composto da preposição ex e da raiz indoeuropeia per (que não deve ser confundida com a preposição latina per, com o sentido de "através de"). Essa raiz, apontando para um significado de risco ou prova, aparece em palavras como pericolo, pirata, repertorio - lembra o estudioso italiano, e poderíamos acrescentar à lista de exemplos pernicioso, permissão, perícia, quem sabe inclusive perjúrio e perdão. Em tempos de pandemia, passamos a considerar perdigotos também como um risco terrível, embora a origem dessa palavra não se aplique ao mesmo caso...

De todo esse passeio filológico, resta a ideia de que experimentar confunde-se com a noção de colocar-se à prova, para eventualmente adquirir um conhecimento. Portanto, experiente é quem de algum modo enfrentou desafios, superou antagonistas - sejam eles outras pessoas ou pressões na forma de costumes, crenças, preconceitos. O aprendizado adquirido desta forma tão prática não pode ser transferido e pertence, de fato, a cada indivíduo que o conquista.

Foto do Tércia Montenegro

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?