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O futuro a flutuar
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

O futuro a flutuar

Depois que a pandemia passar, será que nos sentiremos seguros de viver sem máscaras? Ou o acessório vai se incorporar como uma necessidade incontornável? É verdade que, à medida que o tempo corre, a humanidade arranja novos meios ou necessidades para se cobrir ou amarrar. Houve uma época em que nosso corpo não se metia em tantas roupas, e andávamos com os pés, não levados por gaiolas móveis. Então a partir de agora ficaremos abrigados em excesso: com o rosto debaixo de um pano, com o corpo dentro de um carro, sob um cinto de segurança, debaixo de roupas, e mais roupas, íntimas. Espero que, se o passo seguinte for a criação de cápsulas, a humanidade ao menos retorne à nudez. Que cada um, nu dentro de sua bolha, protegido e sequestrado por essa placenta eterna, possa experimentar o toque direto na própria pele. Inventarão certamente dispositivos para manter o pudor: a bolha pode, por exemplo, tornar-se nublada em certas áreas, para os que a veem de fora, isto é, de outras bolhas. Alguns poderão escolher o fumê, estampas florais ou mesmo projeção de pinturas, na superfície bolhosa - e assim a diferença social continuará vigorando: todos nus e isolados, mas uns poucos em bolhas riquíssimas, talvez até disfarçadas em bolhas simples às vezes, para não despertar o ódio alheio. Sim, porque a humanidade ainda será igual, nos seus velhos sentimentos - e inimigos continuarão à espreita, testando zarabatanas, dardos ou alfinetes, para estragar a bolha vizinha, em casos extremos destruí-la, com consequências trágicas. Não imagino bem os detalhes de uma rotina nesse tipo de envoltório, mas suponho que estudos, convívio, passeios, tudo se fará de modo remoto, com hologramas - para quem puder pagar, claro. Mas me intriga pensar nos casos em que o contato direto é indispensável, digamos, num exame médico, no ato sexual, no parto... Creio que haveria uma bolha específica para cada uma dessas ocasiões e, quando as pessoas combinassem de se encontrar nesse espaço comum, ainda assim não teriam acesso completo uma à outra. Um tipo de plasma, uma película viscosa cobriria o corpo de cada ser que entrasse na bolha coletiva, inclusive os bebês recém-vindos ao mundo. O sexo seria possível, mas apenas dentro desse preservativo integral. Filhos, para quem os quisesse, não seriam gerados por fecundação direta, mas sempre induzida - um processo in vitro, limpíssimo. A boa consequência seria o fim dos estupros, porque uma pessoa que se sentisse abusada poderia, com um comando, espessar a película na região baixa, tornando-a inviolável. Fim das gravidezes não planejadas, das agressões domésticas (pois marido e esposa não sairiam de suas bolhas individuais, na maior parte do relacionamento)... Percebo como esse estilo de vida traria vantagens às mulheres, e isso é um péssimo sinal. Mostra certa ideia - de que só podemos estar em paz com a supressão da liberdade física - subjacente até num delírio futurista. 

Foto do Tércia Montenegro

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