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A vida secreta
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

A vida secreta

Tipo Crônica
Ilustração de Carlus Campos (Foto: Carlus Campos/O POVO)
Foto: Carlus Campos/O POVO Ilustração de Carlus Campos

Todo mundo deveria ter uma vida secreta. Escrevo esta frase inicial e já pressinto o leitor alerta, disposto a se eriçar. Pois a ideia de uma rotina misteriosa geralmente é sinal de vícios, manias ou tendências inconfessáveis. Quem nunca conheceu um perfeito cidadão, que na surdina carrega certo impulso estranho? O hábito secreto pode ser inofensivo, porém vergonhoso - como no caso daquela senhora idosa que era conhecida por suas proezas culinárias, mas também gostava de guardar, na despensa, pilhas e pilhas de revistas pornográficas.

É óbvio que não estou defendendo mistérios criminais, tendências mortíferas, taras, nada disso. Uma vida secreta pode se concretizar com um simples hobby ou com uma atividade paralela à rotina profissional, algo que fuja das ações obrigatórias. Imaginem, por exemplo, que aquele porteiro do clube esportivo não é apenas um encarregado de fiscalizar o vaivém de pessoas e carros. À noite, quando chega em casa, ele se dedica a compor sambas e modinhas, canções sem compromisso e quase condenadas a permanecerem incógnitas. Talvez ele precise de talento, mas não é isso o que importa: o seu exercício musical destina-se a ventilar a vida, não é uma estratégia para se tornar rico.

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Aquele outro rapaz, que abriu um pequeno comércio ao lado do clube, também escapa do tédio nas horas vagas: dedica-se ao aeromodelismo com uma paixão de criança. E agora, pela calçada, passa uma jovem com todo o jeito de universitária. Ela não somente cumpre tarefas de estudo e se diverte com os amigos de sua idade; nos fins de semana, arrecada fundos para um bazar e envia auxílio aos albinos da Tanzânia.

Em todos esses "desvios" da mesmice, existe um elemento mágico que faz a pessoa se sentir diferente, especial. Ela adota prazeres que não se compartilham, coisas que parecem ridículas ou inúteis para o juízo alheio. Sobretudo, a pessoa faz suas escolhas por motivação íntima, sem seguir recomendações, campanhas ou projetos de ninguém. A satisfação está em realizar o ato; não é preciso ostentá-lo.

Em tempos de massificação virtual, ganhar plateia, de qualquer tipo que seja, virou exigência - daí porque uma vida com lados secretos sugere transgressão ou imoralidade. Mas, sob tal argumento, esconde-se o perigo do controle sobre o gesto livre. Que eu saiba, nenhuma ditadura conseguiu informações com tanta minúcia como fazem certos ambientes virtuais - e (o que é mais grave) o próprio usuário deseja ser seguido, vigiado. Para esses reféns da autoconfissão e do aplauso, ter uma hora solitária - ou uma vida secreta - pode ser a única chance de encontrar a individualidade...

Foto do Tércia Montenegro

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