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Vibrantes e voláteis
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Vibrantes e voláteis

Tipo Crônica

No canal "Casa do saber", eu acompanhava um programa sobre o cérebro humano. Fiquei bem interessada quando o palestrante disse que um bebê compreende o mundo aos fragmentos, por estímulos que "vazam" das estruturas que nos acostumamos a fixar. A criança pequena vê o rosto materno, por exemplo, como se fosse uma colagem cubista flutuante. Ela depois aprende a compactar os traços da figura numa individuação densa, mas a sua percepção inicial é dispersa.

Acontece que a análise desse aspecto cognitivo, considerado imaturo, incapaz de fechar uma Gestalt, a mim pareceu outra coisa. E se o bebê, por estar tão próximo da condição pré-terrena, possuísse uma sensibilidade ampla, mística? E se ele soubesse de fato captar as vibrações energéticas da matéria, os espaços entre os átomos? A miscelânea entre o eu e o outro, ou entre sujeito e mundo não seria - sob este ponto de vista - um estágio infantil, prestes a se desfazer a partir da fase do espelho... seria ao contrário, a forma exata e profunda de compreender o funcionamento das coisas!

Desde que a nossa cognição é guiada para discernir configurações de espaço e perceber sua ficção de limites, igualmente entramos nas fronteiras do tempo marcado e, por consequência, escasso - o que, em diferentes termos experienciais, pode ser inconcebível. Eu me pergunto se, após passar a existência presa à ilusão de densidade, de separação individual, no fim (no instante da morte) recuperamos aquela abrangente perspectiva da infância, se nos vemos dissolvidos na vastidão cósmica, confundidos com a miríade universal. Creio que sim, inclusive porque os físicos já explicaram a pertinência do que, aos leigos, parece um absurdo alucinatório.

A matéria vibra, e nenhum corpo atinge um formato estável, compacto. Somos - todos e tudo - energia frenética, volátil, dançando pelos arredores de uma suposta silhueta. Imagino que o efeito seja parecido com aquele que o pintor Georges Seurat produziu nos seus quadros pontilhistas: se os vemos muito de perto, eles não formam imagem, são apenas pontinhos em profusão, extremamente próximos uns dos outros, mas, ainda assim, arejados.

Talvez a visão de Deus seja essa, molecular, que nos prova como estamos interligados - mas não à luz de um discurso emotivo, de sensibilização solidária. A integração é um princípio que rege a condição da existência. É uma lei física, na verdade, não um apêndice moral.

Afastados como estamos, contemplando esse quadro, não percebemos a sua técnica criativa. Vemos as figuras bem traçadas, os indivíduos feitos com volume, cheios. Parece até que a vida é sólida, em vez de eterna. Parece que o ego, o tempo ou o espaço nos restringem - mas, na contramão disso, eu suspeito: só existe um território, vasto e uno. Um dia voltaremos a enxergá-lo, sem saber que o enxergamos, e sem saber nem mesmo o que é enxergar.

Foto do Tércia Montenegro

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