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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

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Tipo Crônica

Admito: a virada no calendário me põe numa disposição especialmente mística - o que, lógico, não é qualquer singularidade, mas simples reflexo cultural. Basta pensar nas previsões dos astrólogos e videntes convocados pelos programas televisivos, sempre nesta época à beira do ano novo. Assim como quase todo mundo, também fico atenta ao possível descortinar do futuro.

Sofro o risco de acabar no oitavo círculo dantesco, que estabelece como punição para adivinhos o castigo de andarem com a cabeça virada para trás, infernalmente aleijados por ousarem bisbilhotar no porvir (e suponho que, no caso de Dante estar certo em seus vaticínios, ele também se encontrará assim no além, com a cabeça girada por ter previsto tantos destinos tenebrosos em seu poema) - mas, enfim, mesmo sob tal risco, eu dizia, não abandono os oráculos.

Consulto o zodíaco, o tarô, os sonhos; estudo técnicas de captromancia (que é a adivinhação por meio de espelhos), treino hipóteses de leitura com a borra do café... Tudo isso, porém, sem ansiedade - como exercício preventivo, somente. Aprendi que à razão escapam muitas coisas, alcançadas por outros tipos de inteligência. E assim, ao exercitar os presságios, respeitar as luas e as conformidades do humor sutil - que podemos chamar intuição - descubro modos de criar um calendário mais lúcido.

A pandemia, aliás, ensinou que dias exatos, úteis ou vagos, são um recurso mecânico que a sociedade inventou para se organizar - mas a qualquer instante os papéis voam e se espalham, as gavetas se abrem num (inesperado?) vendaval. Somos forçados a adaptar nossa rotina, nosso corpo que de repente desconhece os ciclos, estranha os territórios e utensílios que se tornaram obrigatórios. Se o mundo vai acabar por aquecimento global, expansão cósmica ou algum tipo de colapso quântico, provavelmente ainda não conseguiremos saber, porém quanto aos próximos dias, sim, podemos aplicar muitos treinos de clarividência.

Nestes últimos instantes de 2021, finjo ser profética. Adoto poses de médium, aplico artifícios de autohipnose, considero Nostradamus um aprendiz enquanto escrevo desfechos para indivíduos ou nações. Conecto-me com uma ancestral sacerdotisa (ou serão, na verdade, várias?) que me sopra milagres no ouvido. De todas essas antigas sibilas, recebo os sinais cabalísticos que traço no ar, como proteção à minha casa, à minha alma e, por fim, ao mundo. Apenas com a força das bruxas se pode desancorar de um ano assim, com disposição para um salto - agora bem acrobático: um parafuso antes do poderoso mergulho.

 

 

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