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Sempre desobedecer
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Sempre desobedecer

Este ano eleitoral vai, mesmo que a gente não queira, nos fazer questionar as estruturas políticas, com seus papéis simbólicos tão óbvios e repetidos. No meio das preparações para o exercício de cidadania, eu me pego antecipando uma decidida náusea: abomino os discursos inflamados, venham de que lado for, detesto o carnaval ruim dos comícios, dos autos-de-fé que persistem com incessantes demônios a expurgar. A sedução pelo tom emotivo, a criação de ídolos ou o apelo a esperanças maníacas... nada disso me engana, como não enganaria ninguém que se desse ao trabalho de observar.

A ânsia por um líder, um mestre ou guru deve ser resquício de comportamento infantil: a pessoa quer ser conduzida, guiada, protegida por alguém que parece mais autorizado que ela, num determinado assunto. Aos poucos, o discípulo pode se transformar num dependente, atraído pelo gozo desse alívio; não precisa decidir nada, decidem por ele. A desresponsabilização pode ser outro nome para a covardia. Existe uma paz no apagamento de si - mas o custo é altíssimo, envolve a abdicação da individualidade, da chance de existir enquanto sujeito único neste mundo.

A concordância fanática ou automatizada vira um gesto submisso. Se queremos ser livres, dentro das restrições em que podemos praticar nossas escolhas, que pelo menos tenhamos esse "trabalho" de raciocinar, fazer ponderações prévias, como se exige de uma pessoa adulta. Como dizia o poeta Henry David Thoreau, "se eu não for eu, quem o será em meu lugar?".

Oportunamente, consulto o livro de Frédéric Gros, Desobedecer (Ubu, 2018). Encontro um trecho que destaco:

"É o pensamento pensante, o trabalho crítico que nos faz desobedecer. O exame socrático requer esse pensamento pensante, e não um pensamento pensado (a lição que recitamos, o dogma que repetimos). Quero dizer com isso que cada um deve esforçar-se para se postar na vertical da questão e que seu pensamento só se anime em eco a essa convocação. Impedir-se de recitar receitas, de gaguejar fórmulas aprendidas, de aplicar soluções prontas, de receber evidências passivas - e principalmente confiar nas hesitações da consciência. Mais uma vez, princípio de responsabilidade indelegável: ninguém pode pensar em seu lugar, ninguém pode responder em seu lugar." (p.183)

Belchior já recomendava, em "Como o diabo gosta", nunca reverenciar. Admiro, sim, algumas pessoas, mas não me prostro aos pés de nenhuma - nem assumo postura de marionete. Persigo o paradoxo de sempre obedecer ao ímpeto da desobediência, porque talvez essa seja uma forma de conservar a própria voz - de pensar em si como alguém livre para debater, arguir e, ainda que pelo silêncio, contestar o que me dizem.

 

Foto do Tércia Montenegro

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