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Multiartistas
Foto de Tércia Montenegro
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

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O exercício de práticas criativas plurais, ao contrário do que pensam os rotuladores de plantão, não dispersa um(a) artista – pelo menos, não no sentido de fazê-lo(a) perder algo, distrair-se do mais importante, ou algo do tipo.

Quando estreei na literatura, mais de vinte anos atrás, as pessoas da área me receberam dizendo que eu era contista por essência, tinha ritmo para a prosa curta – e assim recebi um rótulo feito para definir e, ao mesmo tempo, afastar. Poetas e romancistas estavam em categorias bem diferentes da minha; ensaístas e cronistas talvez se aproximassem, mas com relativas distinções. Eu me sentia constrangida a uma espécie de “pureza” do ofício, pois a especialidade (era o que ouvia) leva à excelência, e “não se pode querer fazer tudo”: melhor batalhar num campo específico e não se dispersar por mil interesses.

Acontece que logo me aborreci com esses esforços de contenção. Notei que o ato de classificar produz um recorte, uma triagem – restringe a impulsividade. Tudo o que menos queria enquanto artista era uma cartilha, um guia de procedimentos para me limitar. Afinal, por que não reconhecer identidades em processo, instáveis e dinâmicas como a própria vida? Com o tempo, fui ingressando na fotografia, na performance, tive experiências com dança e, agora, mergulho em técnicas do teatro.

Para que tudo isso? alguém pode inquirir. Respondo com trechos do pernambucano José Cláudio da Silva, num artigo intitulado “Em defesa dos sumérios”, publicado na revista Continente, na década de 1990. Nele, o autor elabora seu protesto contra a tendência de, no Brasil, exigir-se que um artista visual “mantenha-se pré-sumeriamente de bico calado, sob pena de, por escrever, ser, como pintor, desclassificado”. Contra essa patrulha, nasce a revolta: “Escrever, pintar, são as minhas velhas companhias; em Ipojuca, para vencer o tédio da loja no interior que só tem movimento dia de feira; no Recife, para vencer o tédio do internato no Colégio Marista. E até hoje pinto, escrevo, como faço escultura e gosto de desenhar. Sinto-me diminuído, mas é por não ter aprendido mais coisas, como fagote ou violino.”

Ao final, José Cláudio reconhece: “Mesmo não havendo necessidade de nos justificarmos, perante seja quem for, pelo ato de escrever ou de esculpir, além de pintar, posso acrescentar que, do ponto de vista da minha experiência pessoal, a prática da escultura, depois de dez ou mais anos de exercê-la, me vem aos poucos livrar, nos quadros, de um antigo compromisso volumétrico que, atendo-me excessivamente à figura, impedia-me de enxergar o quadro como um todo; exatamente como o hábito de escrever, a pretensão ao cultivo das belas-letras me deixa puro diante do quadro ou da pedra, limpo de preocupações literárias.”

O exercício de práticas criativas plurais, ao contrário do que pensam os rotuladores de plantão, não dispersa um(a) artista – pelo menos, não no sentido de fazê-lo(a) perder algo, distrair-se do mais importante, ou algo do tipo. Essa dispersão é da ordem do crescimento, do impulso livre. É o festejo de uma autodiversidade que levou Mário de Andrade a declarar num poema: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta.”

 

Foto do Tércia Montenegro

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