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O inconcebível
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

O inconcebível

Ilustração para a crônica O inconcebível, de Tércia Montenegro
Vida&Arte domingo (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos Ilustração para a crônica O inconcebível, de Tércia Montenegro Vida&Arte domingo

"Pensem nas crianças mudas telepáticas": lembro como a voz de Ney Matogrosso me ensinou, mais de três décadas atrás, os versos de Vinicius de Moraes. E como eu pensei nessas figuras tristes, feridas por um pavor inexplicável. Imaginei me deslocar pelo cenário devastado, o Japão no silêncio radioativo. Muito tempo depois, com a explosão em Fukushima, voltei a experimentar a mesma paralisia de horror.

Mas tive muitos outros motivos, por diversos países e fatos. Se eu lia sobre as guerras mundiais, especialmente a segunda, se via documentários com imagens de pessoas nos guetos, nos campos de concentração... eu me calava, em choque. Se pesquisava sobre a caça às bruxas medieval, se encontrava ilustrações dos autos-de-fé, idem. Se me informava sobre Sarajevo, sobre Ruanda - ou a história dos armênios, dos russos. A escravidão no Brasil. O muro de Berlim. Terremotos. O tsunami engolindo cidades. Furacões e tornados, tempestades arrastando casas. Incêndio nas florestas portuguesas, pessoas morrendo dentro de seus carros, enquanto fugiam. Fogo na Austrália, na Amazônia. As cinzas de Pompeia. O Vietnã. Brumadinho.

Ainda prendo a respiração, se encontro notícias sobre refugiados, exilados ou órfãos. Se penso nas meninas sírias que encontrei a caminho de Bruxelas. Se me lembro dos desvalidos, dos mutilados, das crianças traumatizadas por fome, tiros, violência na família. Emudeço pelas mulheres apedrejadas na sharia, pelas chinesas com pés de lótus, pelas garotas circuncisadas na África, por Mendieta, Marielle e tantas outras, anônimas, torturadas. Por todas as mulheres que já foram silenciadas.

O fôlego me escapa, se penso nos perseguidos de Franco, nas vítimas do terrível Pol Pot - e em todos os ancestrais imolados em sacrifícios, santos ou civis. O que houve na Sibéria. Nos hospícios. Nas velhas escolas, com palmatórias e castigos. Tudo isso me aterroriza.

E também sufoco um grito, se volto o meu olhar interno para os animais, aves, cães e gatos desvairados pelos fogos de artifício do último réveillon: esse crime aconteceu em Fortaleza, em tantas cidades brasileiras. Se penso nos zoológicos e testes laboratoriais, nas fazendas de abate. Na poluição do plástico nos oceanos. Se recordo o desalento dos meus alunos e a minha própria revolta inútil, com a grotesca política nacional.

Agora, vivemos mais um inconcebível: um vício em turnê de contaminação pelo globo. A lista do horror me chama, pede que a preencha ainda mais, antes de incluir essa doença contemporânea - mas creio que por enquanto basta. Ela já me serve para recordar que o silêncio dentro de casa, no isolamento, tem o valor de uma prece. Que pode ser direcionada a todas as épocas, talvez ao mundo inteiro. Quem sabe?

 

Foto do Tércia Montenegro

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