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Só coronavírus?
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Só coronavírus?

"Mas será possível que só se fala nesse coronavírus?", ouço um indignado sujeito resmungar para a esposa, enquanto ambos andam, sem máscaras, pelo supermercado. Sim, senhor: estamos numa fase monotemática; para onde nos viramos, há informes, comentários, textos, vídeos, memes feitos sobre a pandemia ou por causa dela. Mas na verdade abordar esta doença levanta camadas infinitas por dentro da casca dos fatos. Dispara - de modo mais ou menos evidente - debates sobre política e economia (óbvio), mas também sobre arte, espiritualidade, esporte, saúde mental, práticas pedagógicas, urbanismo, ecologia, bem-estar, família...Mesmo quando não se discutem claramente esses assuntos, as mudanças levam a uma reflexão.

O estudante que um mês e meio atrás se distraía com o celular durante uma aula, por exemplo, talvez esteja se dando conta de que faz muita diferença a sala dentro da escola. A tela do smartphone de repente não lhe abre o mundo; ao contrário, limita-o - e é possível que sinta uma perturbação importante, que levará a uma descoberta: não se ministra aula apenas com voz e conteúdo; a cabeça flutuante do professor no vídeo cansa, porque na realidade um bom profissional dá aula com o corpo inteiro, engaja-se com gestos, movimentos, posturas perdidas no instante em que o magistério vira essa janelinha aberta por uma câmera.

Outros insights podem acontecer em relação a afetos, convivências, modos de se comunicar, aspectos da própria aparência, prioridades. Muitos começam a questionar a lógica das ambições como uma estratégia libertária. A maioria de nós está enfrentando uma diáspora interna, apartando ritmos, expectativas, até formas de vida. Fortes mudanças ocorrem durante o gotejamento dos dias, num fluxo que às vezes parece se espessar, ficar mais violento com uma notícia: morreu uma pessoa querida, alguém próximo, que não era apenas um nome ou estatística. Sofremos.

Se alguém ainda vê a situação como um mero inconveniente, se apenas se aborrece ou revolta pela rotina alterada, devo dizer: é estranho. Estranho e muito grave. Vejo alguns que - por ignorância ou desvario - simplesmente seguem com as atividades no tom de sempre, e há pessoas que, no seu papel público, deixam de problematizar o coronavírus, minimizando, às vezes de maneira cínica, a catástrofe que a humanidade experimenta.

Por favor, não creiam que sou pessimista ou gosto de cultivar tristezas. Quem me conhece sabe - levo como slogan a frase de Buñuel, que dizia: Um dia sem gargalhar é um dia perdido. Mas mesmo com toda a leveza, sei reconhecer momentos sérios. As pessoas que estão seguindo com seus dias normalmente, ou fingindo fazer isso dentro de suas profissões e no contato social, podem se incluir no rol dos irresponsáveis. O vírus não é uma gripezinha. E a vida não continua igual, com uns ajustes aqui e ali, numa simples questão de adaptabilidade. Pensemos sobre tudo isso. É a hora!

Tércia Montenegro

 

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