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Olhe com atenção
Foto de Tércia Montenegro
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Olhe com atenção

Tipo Crônica

No belo filme A câmera de Claire, há uma passagem em que a personagem-título, interpretada por Isabelle Huppert, responde ao motivo pelo qual fotografava: "Porque o único jeito de mudar as coisas é olhar para elas novamente de modo bem devagar". Penso agora que, num período de quarentena, essa estratégia pode servir como alívio, ou até como solução.

Olhar com atenção: de fato, sem contar a prática fotográfica, creio que só fiz isso - com espontânea intensidade - na infância. Toda criança tem curiosidade pelo mundo; tudo, em sua experiência tão tenra, parece inverossímil e, por isso mesmo, possível. Crianças se espantam continuamente, sobretudo as muito pequenas, que ainda não falam; portanto, ainda não receberam modos de rotular o mundo. Para elas, as formas e superfícies transitam em fluxos mágicos. Talvez tenham ilusões óticas ou vejam fantasmas - o seu assombro permanece constante, pois não sabem discernir as fronteiras do real.

Mas depois... ah, depois o crescimento é uma perda de ilusões. As coisas se fixam nos lugares, cabem nos aprendizados. A própria identidade parece estável - e daí a pensar que uma situação se torna imóvel, um ser se paralisa num estado qualquer... eis um mero passo. As ilusões da infância são substituídas por enganos, juízos simplistas: o equívoco-mor de achar que algo "vai ser sempre assim".

Se voltarmos a observar o mundo, aprendendo a apenas estar na experiência de um espaço, notamos que nada permanece. A luz muda, as partículas de poeira dançam aqui em raios solares, mas ali já são invisíveis. Há uma sombra fina nesta parede, uma silhueta cuja companhia durou um segundo. Os ruídos da vizinhança, junto com os pássaros, criam timbres familiares - mas não quero pensar em sua rotina, não quero enfiar tudo no saco "sons familiares". Quero perceber o grito periódico sem classificá-lo com palavras: "canto do galo", "sirene" ou "buzina". Quero apenas o grito, e quero escutá-lo como se não soubesse o que ele é, de onde vem, e sequer soubesse que o que faço é escutar.

Quero somente estar disponível à vivência. Isso, que talvez alguém entenda como um tipo de meditação, é na verdade um regresso. Já fomos entregues e confiantes, sem qualquer defesa (e sem pavor por essas circunstâncias). Depois, apenas depois, aprendemos a lutar, a produzir, a fazer coisas úteis, fazer coisas também belas, e aprendemos o medo, a preocupação, a raiva, a vingança, ativamos emoções e crenças coletivas, agimos conforme a sociedade, praticamos obediência ou rebeldia...

Mas agora eu descubro que é possível retornar - visitar, nem que seja por um instante, o estágio sutil da existência primeira. Simplesmente sentir, sem buscar um nome, uma expectativa, um pensamento. Trata-se de estar e observar. Olhar com atenção me parece a prática mais vital.

 

Foto do Tércia Montenegro

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