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Os muitos medos
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Os muitos medos

Eu era bem menina quando tive o meu primeiro medo abstrato, por assim dizer – um sentimento motivado por algo que eu não via, nem se relacionava à dor física (pelo menos, não diretamente). Era o medo da inflação. A palavra, em pronúncia diária na minha casa durante a década de 1980, fazia com que eu pensasse num corpo grande, uma espécie de balão a inflar. E, quando mais ele inflasse, menos os meus pais teriam dinheiro no fim do mês.
Depois, muitos outros medos invisíveis se apresentaram a mim: aprendi a ter medo da guerra fria, da aids, do câncer, e medo de bala perdida, assalto, sequestro, acidentes. Eu misturava sensações de pavor próximas com outras bem distantes, que chegavam por notícias. Tinha medo de cachorro feroz, morcego e, claro, barata – mas também queria fugir quando pensava em asteroides desgovernados pelo céu, buracos negros, tempestades.
Através de gibis, percorri paisagens temíveis, que me deixavam arrepiada e causavam uma espécie de vício. Quanto mais eu sofria com a aflição, mais procurava senti-la – e demorava nos pântanos, nas areias movediças ou florestas tenebrosas. Encontrava, naquelas histórias, criaturas que nunca veria no mundo, mas ainda assim me deixavam assustadíssima: dinossauros, saúvas, serpentes, alienígenas...
Tive um insuportável medo da aritmética e de sua respectiva professora, com olhos azuis-gélidos. E medo do mar, de ruídos estranhos à meia-noite, medo de filmes de terror, de possessões, de doidos e bêbados. Depois, o suspense deixou de causar um friozinho divertido na barriga, passou a ser um pavor selvagem e ao mesmo tempo sutil, conforme eu crescia. Conheci o medo de estupro e de assédios, o medo de ficar grávida, medo de ser morta num relacionamento abusivo – e medo de matar também, por defesa ou ódio repentino.
Mais recentemente, veio o medo da Covid-19 e, cada vez mais, o medo que me inspiram os estúpidos e os crápulas.
Dizem que o medo se confunde com respeito; em alguns casos, submissão? Se for assim, nunca entendi perfeitamente este sentimento. Às vezes, acho que ele se mistura com raiva, repulsa... mas jamais me inspira reverência.
“Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come” – ouvi bastante isso, na época em que pensava na inflação como aquela bolha prestes a estourar. Era a tradução de um dilema, volta e meia revirado por meu pai ou minha mãe. Quando os ouvia pronunciarem aquela frase diante de um impasse qualquer, eu sabia que a expressão não exigia resposta, mas mesmo assim mentalmente sempre fazia a escolha: “correr” – porque nesta opção cabia um movimento, uma ação enérgica, em vez da desistência frágil. Depois entendi que minha alternativa indicava coragem.
Pois até hoje creio que esse é o único aprendizado que se pode tirar de um medo: justamente a força para enfrentá-lo. Ainda que as circunstâncias provem que essa força foi pouca, ou até mesmo inútil, pelo menos não se teve um gesto passivo, uma atitude acomodada. Se me aquieto diante do ruim, portanto, nunca é por medo. Será, em alguns casos, cansaço; em outros, desprezo.

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