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"Admitir a necessidade das cotas raciais é admitir o enfrentamento ao racismo no Brasil", afirma antropóloga
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"Admitir a necessidade das cotas raciais é admitir o enfrentamento ao racismo no Brasil", afirma antropóloga

Vera Rodrigues, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), defende a Lei das Cotas, que completou 10 anos e é apoiada por 75% dos eleitores cearenses, segundo pesquisa Ipespe encomendada pelo O POVO
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Vera Rodrigues, antropóloga e professora na Unilab.  (Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Vera Rodrigues, antropóloga e professora na Unilab.

O ano de 2022 é um marco temporal importante em diversos aspectos no Brasil, entre eles os dez anos de existência das cotas nas universidades e institutos federais. Por lei, metade das vagas nos cursos devem ser destinadas a estudantes oriundos de escolas públicas. Dentro desse contingente, as vagas devem ainda ser reservadas para negros, indígenas e pessoas com deficiência.

Para Vera Rodrigues, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), os debates mais acirrados sobre as cotas incidem sobre as questões raciais. "Não vejo tantos embates furiosos quando a gente fala, por exemplo, em cotas sociais. Não é apenas uma questão de não ter dinheiro suficiente, vai além. Os dados de genocídio da juventude negra, de feminicídio contra mulheres negras, estão aí pra falar disso", afirma.

Vera, que também é membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), enfatiza que o Brasil precisa se reconhecer como um país racista. É dessa forma que a antropóloga vê caminhos para superarmos os processos inconclusos que vivemos. 

O POVO - O que é a Lei de Cotas? Porque ela existe e qual é sua importância?

Vera Rodrigues - Nós temos as cotas sociais, que são para o ingresso de pessoas que vieram da escola pública, e as cotas raciais, que entraram como uma subcota dentro desse universo. Elas são um mecanismo possível de uma ação afirmativa que visa combater as desigualdades raciais e sociais na educação.

Historicamente, nós, população negra, sempre estivemos subrepresentados nos espaços de educação, especialmente no ensino superior. Lá no início de 2002, se não me engano, tínhamos 2% apenas de universitários negros num país como o Brasil, cuja maioria da população é negra. Uma discrepância muito grande entre o percentual populacional e a representação dessa mesma população em espaços decisórios, espaços de prestígio, de acesso de bens e serviços, de formação, como é o caso das universidades federais.

Então as ações afirmativas, mais precisamente as cotas raciais, elas vêm alinhadas com a perspectiva de fazer o enfrentamento a essas desigualdades enfrentadas pela população negra.

OP - Qual é a avaliação que podemos fazer das cotas dentro desses 10 anos de vigência da lei?

Vera - Apesar de termos análises de pesquisadores, de associações, as análises que temos são dispersas. Quando a lei foi aprovada, estava previsto que o governo faria um acompanhamento em nível nacional. Isso não aconteceu. A fim desse decênio, entendemos que é preciso focar em três pontos: monitoramento, aprimoramento e defesa.

Monitoramento porque não se faz qualquer política pública se não há um diagnóstico de como a política está andando, sabe? Precisamos saber, da forma mais ampla possível, quais foram os cursos acessados, quais foram os índices de ingresso, permanência e sucesso desses estudantes… Saber onde estão os gargalos e onde estão os pontos fortes.

Já o aprimoramento é porque a própria sociedade tem novos desafios. O estudante cotista necessita também de políticas de assistência estudantil, dos auxílios para moradia, para garantir o restaurante universitário, por exemplo. Quando há cortes ou redução nos orçamentos da educação é óbvio que isso impacta nos estudantes, entre eles os cotistas que, por vezes, já têm um histórico de vulnerabilidade social. Isso sem falar na integração com outras políticas públicas, como a de transferência de renda.

Finalmente, a defesa é necessária porque não podemos ignorar que ainda temos uma correlação de forças pró e contra as cotas. Tramitam no Congresso Nacional projetos contrários à Lei de Cotas. Isso significa que dez anos depois ainda há muito a ser feito.

OP - E por quê ainda temos essas disputas?

Vera - Porque, apesar de pensada para o âmbito da educação, a Lei de Cotas extrapolou limites da educação. Ela começou a atingir outros setores da sociedade brasileira. São dez anos de uma revolução silenciosa.

Por exemplo, no Ceará, agora temos cotas para os concursos para ingresso no serviço público. Já é uma outra esfera, é o mundo do trabalho e do serviço público.

OP - As cotas permanecem como uma necessidade?

Vera - Sim, sem dúvida. As desigualdades raciais não têm dez anos, elas têm mais de 100. Não vamos desfazer em dez anos o que em centenas de anos foi construído e perpetuado cotidianamente. Nós temos processos inconclusos no Brasil.

Quem está à frente deste país, quem compõe o cenário político, judiciário e empresarial deste país? Já deu tempo para a gente ter resolvido isso, mas não foi (resolvido). E a gente só avançou o que avançou porque se conseguiu forjar, a partir da luta do movimento negro brasileiro, um mecanismo prático de inclusão.

A população negra ainda é vista como algo que incomoda. Admitir a necessidade das cotas raciais é admitir o racismo no Brasil. E o Brasil nunca quis enfrentar isso.

OP - Quando a senhora se refere aos processos inconclusos do Brasil, estamos falando do quê?

Vera - Se pegar a independência do Brasil, por exemplo, o que significou para o povo em si? Se em 1822 foram rompidas as amarras coloniais do Brasil com Portugal, as amarras coloniais do Brasil com seu povo permaneceram. O Brasil continua escravista até 1888, e isso formalmente porque a coisa não terminou no dia seguinte.

O que aconteceu no dia 14 de maio de 1888, o dia após a abolição? Isso significou política pública de reparação ou foi só um "Vire-se, não precisamos mais de vocês"? A sociedade brasileira espera realmente que a meritocracia baixe e, de um dia para o outro, tudo que vai valer é uma uma espécie de uma leitura individual, ou seja, cada um por si e vençam os melhores?

O que aconteceu foi o abandono de uma população negra. E, na consequência, seus descendentes sofreram com esse abandono. Ainda temos muitas consequências para lidar. Nós precisamos ainda ter espaços de representatividade, que não é simplesmente ter um corpo negro ali.

OP - Diante disso, como as cotas podem avançar?

Vera - Pela legitimação das bancas de heteroidentificação. Temos uma política pública que parte da autodeclaração; mas a autodeclaração não é o fim, ela é o princípio. Acho que foi uma ingenuidade imaginar que teríamos nenhuma fraude nesse país. Por menor que seja a proporção dessas tentativas de fraude, elas existem. Se a gente não combater, a gente ajuda a matar a política, porque nenhuma política pública pode ser conivente com fraude.

Não se faz política pública sem mecanismos de controle. Ninguém pensaria, por exemplo, em fazer uma política de transferência de renda sem exigir cadastro, documentação, não sei o que lá mais. Por que a política de cotas raciais seria diferente?

 

Maior presença

Em 2001, pessoas das classes C, D e E eram de 19% dos estudantes nas universidades federais. Em 2020, a proporção foi de 52%. No mesmo período, pretos, pardos e indígenas saíram de 31% para 52%.

 

10 anos 

Em agosto, a Lei de Cotas (lei nº 12.711/2012) completou 10 anos de vigência. O documento prevê sua revisão após uma década de existência e o fato vem despertando discussões sobre as cotas. A revisão não implica extinção das cotas, mas avaliação dos seus resultados e da viabilidade em serem ampliadas ou reduzidas.

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