Logo O POVO+
Fiscalização contra maus-tratos de animais cai 25% em Fortaleza
CIDADES

Fiscalização contra maus-tratos de animais cai 25% em Fortaleza

|ENTRE 2019 e 2020| O número de fiscalizações feitas pela Agefis em Fortaleza diminuiu, enquanto o total de ocorrências de denúncias de crimes de maus tratos cresceu
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
 BEM-ESTAR animal é físico e psicológico (Foto: FÁBIO LIMA/O POVO)
Foto: FÁBIO LIMA/O POVO BEM-ESTAR animal é físico e psicológico

Em Fortaleza, no ano de 2020, a Agência de Fiscalização (Agefis) autuou 91 pessoas por descumprir o artigo 761 do Código da Cidade, que considera como infração grave a ocorrência de maus-tratos a animais. No total, foram realizadas 857 fiscalizações, mediante denúncias da população. O número é quase 25% menor do registrado em 2019 — 1.153 fiscalizações, com 153 autuações. 

O total de ocorrências, entretanto, aumentou. Conforme dados da Secretária de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), 232 ocorrências relativas a denúncias de crimes de maus-tratos contra animais foram registradas nos três primeiros meses deste ano. No mesmo período de 2020, foram contabilizados 97 procedimentos.

A estudante universitária Taise Praxedes é uma das pessoas que luta para mudar essa realidade. No fim de 2019, ela denunciou o envenenamento que provocou a morte de cinco gatos no Campus do Pici, na Universidade Federal do Ceará (UFC). Praxedes reconhece o receio que teve em fazer a denúncia, mas resolveu levar o caso às autoridades como uma forma de evitar que esses episódios se repitam.

“Denunciar um ato criminoso é papel de cada cidadão e maus-tratos a animais é crime. O medo de retaliação não pode impedir cada um a fazer o que considera certo. Você pode fazer denúncias anônimas e ninguém saberá seus dados. No anonimato ou se identificando, o importante é não deixar passar em branco”, insistiu. 

A garantia do bem-estar animal não se restringe apenas a cães, gatos e outros animais domesticados em ambiente urbano, mas também se estende aos bichos destinados ao consumo humano, seja alimentar ou cultural. Nesses casos, a criação dos animais e especialmente a forma do abate podem levar vacas, frangos, porcos, entre outros animais, a um sofrimento intenso.

De forma similar aos humanos, os animais precisam de dois pilares de bem-estar contemplados para que fiquem satisfeitos: o físico e o psicológico, conforme explica o professor José Antônio D. Barbosa Filho, pesquisador do Núcleo de Estudos em Ambiência Agrícola e Bem-Estar Animal (Neambe) da Universidade Federal do Ceará (UFC).

O especialista pondera que o bem-estar pleno é uma utopia, mas a ideia é evitar que o animal sofra com algum tipo de dor. “Maus-tratos não é necessariamente bater em um animal, como às vezes a gente imagina. O fato de simplesmente não garantir uma alimentação adequada ou não garantir espaço para esse animal se movimentar também caracteriza uma situação de maus-tratos”, pontuou.

 

Para Fernanda Freires, membro da Comissão de Defesa dos Direitos dos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE), a pressão popular é uma das formas mais eficazes de combater a ocorrência desses crimes. Ela pondera que em muitos casos as pessoas vivenciam situações de maus-tratos na vizinhança e se omitem, deixando com que elas se prolonguem.

“Infelizmente, as pessoas não têm consciência de ensinar seus filhos a amar os animais por falta de conhecimento. As crianças veem os animais sendo maltratados com a família e acham que é normal. Nós deveríamos ter o direito animal incluído nas escolas”, defende.

Um recente avanço na legislação brasileira para punição de maus-tratos de animais foi a aprovação, em setembro do ano passado, da chamada Lei Sansão, que ampliou a pena para até 5 anos de prisão para esse tipo de crime contra cães e gatos. A medida modifica a Lei de Crimes Ambientais, que previa detenção de no máximo um ano e não permitia o regime fechado.

O promotor de Justiça Marcus Amorim considerou que o novo instrumento é um “avanço importante” e fez com que o número de denúncias contra os casos de maus-tratos aumentassem. Ele criticou, no entanto, a limitação da lei apenas a cães e gatos. “Outros animais, inclusive domésticos, permaneceram em uma categoria que tem uma proteção penal muito mais frágil. O crime continua sendo de menor potencial ofensivo e não é tratado por um departamento especializado”, enfatiza.

Ele alerta, no entanto, que a lei não é uma solução por si só e precisa de uma maior estrutura do poder público para que seja corretamente aplicada. Além de maior efetivo policial para a fiscalização, Amorim ressalta a necessidade da construção de abrigos públicos para receber os animais que precisam de um novo lar após serem retirados de seus antigos tutores.

“Devia existir uma política pública especificamente para maus-tratos de animais. Retira-se o animal que está com o agressor, mas e aí, faz o que? Tem que haver um lugar para acolhê-lo até que se consiga uma adoção voluntária”, questiona. Ele critica ainda a falta de um setor especializado da Perícia Forense do Ceará (Pefoce) para esses casos, cujo laudo técnico é fundamental para a tramitação jurídica dos crimes.

Para suprir essa demanda, a polícia busca outras instituições, públicas ou privadas, para que os laudos sejam feitos — uma delas é a Universidade Estadual do Ceará (Uece). Com tradicional atuação na área de Medicina Veterinária, os pesquisadores da Uece são acionados para investigar a causa de morte de animais e dar celeridade ao processo.

A enfermeira Daniele Vasconcelos, coordenadora do comitê gestor do Projeto de Convivência com Cães e Gatos em Estado de Abandono no Campus Universitário do Itaperi da Uece, pondera que o acompanhamento da situação dos animais não se restringe apenas a emissão do laudo. Envolve também uma cadeia com outros eventos, como os cuidados necessários para a recuperação do animal.

Ela questiona se a ausência de profissionais dentro da Pefoce para prestar esse serviço pode acabar gerando deficiências na forma como as ocorrências são conduzidas. “É necessário um número maior de profissionais para atender as ocorrências do que o que está disponível nas parcerias institucionais. O Estado precisa contratar profissionais para fazer esse acompanhamento contínuo e permanente”, defende.

Para Fernanda Freires, um problema ainda comum da polícia cearense é a falta de preparação de agentes de batalhões não especializados em meio ambiente para lidar com as ocorrências denunciadas nesses casos. “Eles tratam com vários crimes, mas precisam entender mais sobre o direito animal. Com esse conhecimento, poderiam agir com mais eficiência”, considera.

Apesar de reconhecer um cenário em evolução, Freires critica a presença de poucos profissionais em batalhões especializados, como a Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) da Polícia Civil, criada em 2018. O POVO questionou a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) sobre a atual composição da DPMA e as perspectivas para expansão, mas não foi respondido até a publicação desta matéria

Em artigo publicado em 2014 na Revista Ciência Agronômica da UFC, pesquisadores chegaram à conclusão que os consumidores cearenses de produtos de origem animal têm pouco conhecimento e não estão preocupados sobre como ocorre a criação e abate de animais que originam os produtos que consomem. A publicação levou em conta um universo de 216 pessoas de diferentes classes sociais.

O professor da UFC José Antônio D. Barbosa Filho, um dos pesquisadores que participou da realização da pesquisa, pondera que a distância desses animais da realidade dos grandes centros urbanos é a principal razão para que as pessoas tenham um menor conhecimento ou sensibilidade em relação ao sofrimento que os bichos vivenciam.

“Eu te garanto que o sofrimento dos animais de produção é igual ou maior do que a gente tem em animais de estimação. Há animais que viajam três ou quatro horas com a perna quebrada… São várias coisas que acontecem e são bem piores, mas não estão ao nosso lado, como no caso de gatos e cachorros”, enfatiza o especialista.

O principal foco de investigação dos pesquisadores atualmente é a maneira como os animais são abatidos e o momento de “pré-abate”. Barbosa Filho reconhece que já há uma evolução considerável em relação às condições de criação dos animais nas fazendas, especialmente entre os grandes produtores. Ele alerta que o principal problema está no caminho entre a porteira da fazenda e a chegada ao abatedouro.

“Não adianta nada a gente criar o animal com todas as condições de bem-estar e na hora de abater usarem um pé-de-cabra ou uma marreta. O abate aqui é uma coisa que a gente nem comenta com ninguém porque a pessoa vira vegetariano na hora. Ainda tem abate clandestino, feiras a céu aberto, são coisas que acabam invalidando todos os cuidados anteriores”, avalia.

Em outubro do ano passado, por exemplo, a Agência de Defesa Agropecuária do Ceará (Adagri) fiscalizou um abatedouro clandestino de aves, no bairro Bela Vista, em Fortaleza. O estabelecimento, que não possuía alvará de funcionamento, foi autuado e foram encontrados 120 kg de carcaça de frango inteiro abatido.

Os agentes da Adagri não encontraram registros de controle do processo de abate que garantisse os requisitos higiênico-sanitários e tecnológicos estabelecidos em legislação de forma a assegurar a inocuidade, a qualidade e a integridade do produto final. De acordo com o órgão, situações assim representam um grande problema de saúde pública.

Para Barbosa Filho, a falta de fiscalização é um ponto fundamental para que situações similares a essa continuem acontecendo no Estado. Ele analisa que a inexistência de uma legislação que defina normas de bem-estar animal dificulta que os responsáveis pelos estabelecimentos sejam punidos. Atualmente, o Brasil se restringe a recomendações da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) para prevenir maus-tratos. “Se você não fizer, não vai ser penalizado”, pontua.

A mudança, de acordo com ele, deve vir do cliente final, principal engrenagem da cadeia de produção. “A gente vê hoje um consumidor mudado, antes ninguém lia nem um rótulo. Hoje as pessoas já leem, veem o produto e estão dispostas a pagar até um pouco mais para ter qualidade. Quando o consumidor começa a demandar, o produtor tem que adaptar. Essas mudanças ocorrem de trás para frente”, finaliza.

A professora da Uece Daniele Vasconcelos alerta que é preciso parar de tratar a educação ambiental como se fosse um conhecimento “acessório”. Ela considera que divulgar a causa é uma forma de prevenção e isso deve ser tratado continuamente por todas as instituições. “É uma questão cultural, mas tudo pode ser transformado. É preciso fazer ações de conscientização de forma permanente e não só na semana do meio ambiente”, enfatizou.

No Ceará, as denúncias de maus-tratos contra animais da Capital e Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) são investigadas pela Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) e podem ser feitas presencialmente na própria DPMA, localizada na sede do Complexo de Delegacias Especializadas (Rua Professor Guilhon, 606 – Bloco D – Aeroporto).

Também pode enviar um e-mail para dpma@policiacivil.ce.gov.br ou ainda fazer contato telefônico para os números (85) 3247-2630 ou (85) 3247-2637. É possível ainda fazer registro de Boletim Eletrônico de Ocorrência (BEO), por meio do site da Delegacia Eletrônica (Deletron) da Polícia Civil. A privacidade dos usuários e o sigilo das informações são garantidos.

Se a situação presenciada pelo denunciante for flagrante, o cidadão deve ligar imediatamente para o 190, da Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). É importante repassar o máximo de informação possível, com clareza e precisão, e aguardar a chegada dos policiais ao local da denúncia.

O que você achou desse conteúdo?