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Uma doença chamada fake news
Ciência e Saúde

Uma doença chamada fake news

Ela geralmente é transmitida pela internet e tem a capacidade de contaminar milhões de pessoas ao mesmo tempo. Saiba como se proteger do vírus da ignorância em meio à pandemia de Covid-19 e a campanha nacional de vacinação
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Brasileiros e estrangeiros estão em busca de roteiros turísticos onde haja a opção de pagar pela vacina contra a covid-19 (Foto: Reuters/Direiots reservados)
Foto: Reuters/Direiots reservados Brasileiros e estrangeiros estão em busca de roteiros turísticos onde haja a opção de pagar pela vacina contra a covid-19

Vivemos dois surtos: um causado pelos contágios de Covid-19 e outro, pelo excesso de informações, algumas precisas e outras não, o que torna difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando as pessoas mais precisam de orientação.

O surto de conteúdos falsos foi chamado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) de "infodemia", por "se referir a um grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico, que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo devido a um evento específico, como a pandemia atual", segundo definição da entidade. Nessa situação, surgem rumores e desinformação, além da manipulação de informações com intenção duvidosa. Na era da informação, esse fenômeno é amplificado pelas redes sociais e se alastra mais rapidamente, como um vírus.

Com o início da campanha de vacinação em todo o País na última terça-feira, 19, algumas situações de recusa à CoronaVac já foram registradas e outras tantas devem se multiplicar, como o caso dos idosos em um asilo do Rio de Janeiro que, após discussão com a família, decidiram não receber a vacina. Foram os únicos dentre 154 residentes que preferiram abrir mão da proteção. O motivo alegado foi o medo — não se sabe ao certo de que.

Seria apenas um caso isolado se a desinformação e o obscurantismo não fizessem parte da agenda pública. Apenas para citar os casos mais recentes, em dezembro, o presidente Jais Bolsonaro questionou os possíveis efeitos colaterais das vacinas contra o coronavírus, tomando como exemplo a da Pfizer/BioNtec, e afirmou que não há garantia de que ela não transformará quem a tomar em "um jacaré". "Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) não têm nada a ver com isso. E, o que é pior, mexer no sistema imunológico das pessoas", continuou.

O aplicativo TrateCov, lançado pelo Ministério da Saúde na visita que o ministro Pazuello fez a Manaus, foi retirado do ar na quinta-feira, 22, uma semana depois. O motivo foram as críticas sobre os protocolos de atendimento recomendados pela pasta responsável pela saúde no País. O app orientava profissionais a receitar o chamado "tratamento precoce" com remédios sem comprovação científica de eficácia contra a Covid-19, como a cloroquina e ivermectina.

"Já perdi a conta de quantas vezes esses tipos de mentira chegaram até mim, afinal, as pessoas ainda são muito mal informadas. Eu geralmente nem gasto energia com tamanhas baboseiras, pois eu não tenho tido tempo sequer de ler os artigos científicos. Mas, me revolta profundamente saber que a desinformação vem do Ministério da Saúde, que deveria se pautar pela ciência e não pelas ideologias", critica o médico infectologista Ivo Castelo Branco, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Projeto Avisa, em parceria com o Instituto Butantan, que está acompanhando 90 famílias fortalezenses durante um ano e meio para analisar o impacto na saúde pública das pessoas assintomáticas ao novo coronavírus.

"O movimento antivacina existiu desde o primeiro imunizante. Sou formado há mais de quatro décadas, mas nunca me esqueci da resposta de uma francesa à pergunta que eu fiz sobre a vacinação do filhinho dela que estava com mononucleose. Ela disse que não vacinava nenhum dos filhos porque 'adoecer era engrandecedor'. Aquilo me deu uma revolta", lembra.

"Está passando da hora de as pessoas sofrerem algum tipo de consequência por atos como esses — se bem que a Justiça de vez em quando age nesses casos, ao exigir a obrigatoriedade da imunização em prol do coletivo. Mas penso que vamos conviver muito tempo ainda com esse tipo de problema. Afinal, se o próprio poder público espalha a ignorância e não acontece nada, como podemos ter expectativas de mudanças?", questiona.

 

Os números das fake news

62% dos brasileiros não conseguem reconhecer uma notícia falsa. Destes, 2% nunca ouviram falar do termo “fake news”;

Os peruanos (79%) são os que menos conseguem identificar uma notícia falsa, seguidos pelos colombianos (73%) e chilenos (70%). Os brasileiros ocupam o último lugar na pesquisa, com 62%, logo atrás dos mexicanos e argentinos, com 66% cada;

Apenas 42% dos brasileiros ocasionalmente questionam o que lê na internet;

Os principais meios para cair nas fake news são as redes sociais como WhatsApp e Facebook, onde, em média, um terço dos latino-americanos utilizam as plataformas online para se informar. Sites de mídia tradicionais, por sua vez, são utilizados por apenas 17%;

As mulheres (49%) confiam mais nos conteúdos online que os homens (42%);

Os jovens entre 18 e 24 anos (38%) são os que mais usam as redes sociais para ficar por dentro do que está acontecendo em seu país ou região. Diferente dos internautas entre 35 e 50 anos, que utilizam mais os sites de mídia tradicionais. Curiosamente, quem compartilha mais fake news em seus perfis e comentam as notícias alarmantes sem verificar sua veracidade são os usuários entre 25 e 34 anos;

Sete em cada dez internautas brasileiros (cerca de 100 milhões de pessoas) acreditam em ao menos uma notícia falsa a respeito da pandemia de coronavírus;

94% dos brasileiros entrevistados viram pelo menos uma das notícias falsas sobre o coronavírus;

73% dos brasileiros entrevistados acreditam que pelo menos um dos conteúdos com desinformação é verdadeiro ou provavelmente verdadeiro, seguido por 65% dos estadunidenses e 59% dos italianos;

59% viram ao menos um dos conteúdos desinformativos sobre o coronavírus no WhatsApp;

O WhatsApp também foi a fonte mais citada para 4 das 7 notícias falsas apresentadas aos entrevistados;

55% viram ao menos um dos conteúdos desinformativos no Facebook;

80% dizem que gostariam de receber correções de verificadores de fatos quando forem expostos a notícias falsas.

Fontes: Estudo “Iceberg Digital” desenvolvido na América Latina pela Kaspersky, empresa global de cibersegurança, em parceria com a empresa de pesquisa CORPA. Publicado em janeiro de 2020 / Estudo “O Brasil está sofrendo uma infodemia de Covid-19”, realizado pela Avaaz.org, rede de mobilização social. Publicado em maio de 2020.

Como identificar uma notícia falsa

Espere um momento e pense: não acredite imediatamente e saia compartilhando por aí;

Suspeite de conteúdos que causem reações emocionais muito fortes. As notícias inventadas são feitas para causar surpresas ou rejeição. Desconfie de experiências pessoais;

A notícia pede para você confiar, porque a "mídia" quer esconder o fato? Desconfie;

Leia toda a matéria, não somente o título: muitas notícias falsas têm erros gramaticais ou de digitação. Também podem fazer afirmações absolutas sem citar fontes ou com informações que se contradizem;

Pesquise o título no Google. Se for verdade, é provável que outras mídias já tenham compartilhado. Se for falso, alguns sites verificadores de dados já podem ter checado a veracidade, como por exemplo o Projeto Comprova, a Fato ou Fake, Agência Lupa, Aos fatos, Boatos.org etc.

Descubra a fonte: é uma corrente do whatsapp sem autoria? Cita uma fonte legítima? Pesquise o nome da mídia ou do autor no Google para ver o que mais essa pessoa fez e em qual mídia trabalha. Preste atenção se o site que publicou as notícias tem um viés fortemente ideológico. Sempre verifique se o site da fonte é mesmo o site que diz ser. Há sites irônicos e réplicas de sites originais;

Verifique o contexto e a data: algumas fake news divulgam informações do passado como se fossem acontecimentos atuais. Observe se o contexto faz sentido;

Recebeu uma foto que conta uma história? Você pode fazer uma pesquisa "inversa" de imagens e ver se outros sites a reproduziram. Salve a foto no seu computador e faça o upload no imagens.google.com ou no reverse.photos;

Denuncie a publicação: as redes sociais, como Twitter, Facebook, Instagram e Whatsapp estão melhorando suas políticas de checagem de conteúdo. Denuncie a postagem ou o contato (Whatsapp) para a própria rede social ou compartilhe em grupos de checagem de fatos.

Fonte: Manual "Coronavírus - Fake news e como identificá-las", publicado em junho de 2020 pela Vidya Academics (USP) e Pretty Much Science.

Entrevista Sérgio Lüdtke- Projeto Comprova

O POVO - Qual a mudança nas fakes news relacionadas à pandemia, desde o começo dela, em comparação com o atual momento?

Sérgio Lüdtke - Antes da pandemia chegar ao Brasil, o conteúdo era sempre relacionado a algum país, então havia muitas postagens dizendo que a gravidade da pandemia na Itália era uma farsa, por exemplo. Quando chegou ao Brasil e tivemos o lockdown, os boatos eram sobre as fraudes nos resultados do distanciamento nos países que já passaram por ele, para dizer que o distanciamento não funcionava. Depois começaram as postagens sobre cloroquina, que ainda persistem. De modo geral, todas essas narrativas sempre buscaram se alinhar com os posicionamentos do Trump nos Estados Unidos ou com os de Bolsonaro, aqui no Brasil.

O POVO - Algum fator faz com que um tipo de conteúdo falso seja mais ou menos crível e engane mais pessoas?

Sérgio Lüdtke - Sim. A peça de desinformação normalmente tem um núcleo de verdade. Ela traz alguma informação verdadeira mas tenta descontextualizar ou enviesar essa verdade. Isso é um fator importante para o resultado obtido. No entanto, a gente não considera que um boato sozinho consegue mudar a cabeça das pessoas. Há todo um processo que tem a ver com o fato de que estamos cada vez mais fechados em bolhas informativas Os algoritmos das plataformas contribuem para que as pessoas recebam mais do mesmo e se convençam aos poucos. Ou seja, os grupos disseminadores vão na onda da verossimilhança e da repetição. Não podemos deixar de mencionar também o trabalho árduo desses grupos para desacreditar o trabalho da imprensa.

O POVO - Você consegue vislumbrar alguma solução para esse problema das fakes?

Sérgio Lüdtke - Acho que passa pela consciência de que temos um problema sério e que ele leva as pessoas a tomarem decisões equivocadas. Essas escolhas erradas podem se referir a uma eleição ou até mesmo custar uma vida. Eu não gosto de ceticismo, mas não vejo ainda as pessoas ficando mais preocupadas e alertas nesta pandemia. E em relação aos fortes ataques à mídia, é o tipo de embate que a gente não sabe quem vai levar a melhor. Para que a sociedade se conscientize, é preciso ter uma educação midiática desde a escola. A vacina contra o que estamos vendo hoje é a informação de qualidade, feita por jornalistas. Só que o jornalismo, sozinho, não tem condições de se mostrar como uma salvação. Ele precisa de ajuda. Se uma pessoa não confia em um determinado veículo, ela pode acessar outros. Por exemplo, há ótimas informações sobre a pandemia feitas por agências de universidades. O que não dá é para formar opinião tendo como base sites que até se disfarçam de veículos de imprensa mas na verdade são depósitos de teorias conspiratórias sensacionalistas.

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