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Mitos e lendas resgatam as origens do Cariri
Ciência e Saúde

Mitos e lendas resgatam as origens do Cariri

A investigação arqueológica na região demonstra como os primeiros povos caririenses conviviam intimamente com a paisagem. Deles, o Cariri herda a misticidade e a identidade
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cariri pré-histórico 2 (Foto: Isac Bernardo)
Foto: Isac Bernardo cariri pré-histórico 2
 
 

O local para o painel precisava ser muito bem escolhido, em algum espaço um pouco mais isolado, distante da vida cotidiana. Por integrar o mundo sagrado, ele deveria estar exposto e, ao mesmo tempo, bem protegido. Subindo a serra, depararam-se com um paredão e uma plataforma que parecia ideal para começarem as artes; e assim o fizeram, gravando a rocha com pedras e, depois, pintando o desenho para ― imagina-se ― criar profundidade.

Gerações depois, não se sabe se do mesmo povo indígena ou de outros grupos, as gravuras foram repintadas. Talvez nem soubessem mais o significado delas, mas reconheciam sua importância, e portanto as respeitavam. Em volta dos símbolos, aproveitaram para gravar outras imagens.

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Hoje em dia, parte do painel localizado no Sítio Arqueológico de Santa Fé (Crato) foi perdido pelo desmanche natural da rocha composta por arenitos, uma característica da Formação Exu, a mais recente do tempo geológico no Araripe. Mesmo assim, o sítio arqueológico ainda guarda dados imprescindíveis para a compreensão de como e por quem o Cariri cearense foi ocupado.

Apesar de o nome da região vir do povo indígena Kariri ― o grupo mais significativo e o que ocupa até hoje os municípios de Crato, Missão Velha, Caririaçu, Milagres, Barro, Aurora e Lavras da Mangabeira ―, artefatos arqueológicos indicam que antes da colonização houve uma afluência de outras etnias na Bacia do Araripe. E dessas relações o caririense herdou uma cultura de misticismo e religiosidade singulares.

Estamos falando de 3.100 anos a.C., a datação mais antiga que se tem até o momento. Na escala geológica, a chegada humana no Araripe deve ter ocorrido entre o final do Pleistoceno e o início do Holoceno, quando houve “várias flutuações climáticas”.

Além das diferentes técnicas e “temáticas” das artes rupestres encontradas, a região também dispõe de sítios arqueológicos lito-cerâmicos; ou seja, onde foram descobertas cerâmicas e artefatos feitos de pedra. São mais de 110 sítios cadastrados, indicando a diversidade de grupos que habitaram a Chapada.

 

 

De acordo com Heloísa Bitú, arqueóloga no Instituto de Arqueologia do Cariri Dra. Rosiane Limaverde (IAC), são as diferenças nas características dos objetos, os modos de fazê-los e de decorá-los que ajudam os pesquisadores a concluírem sobre a abundância cultural. “É uma diversidade gráfica muito grande, resultado de uma vivência muito profunda do homem com esse território”, comenta.

Arqueóloga Heloísa Bitú, no Memorial Homem Kariri.(Foto: AURELIO ALVES)
Foto: AURELIO ALVES Arqueóloga Heloísa Bitú, no Memorial Homem Kariri.

Assim, a Chapada virou um “oásis no seco sertão”, como define a arqueóloga pioneira Rosiane Limaverde em sua dissertação sobre os registros rupestres. Neles, natureza e manifestação cultural estão intrinsecamente relacionados em um caráter quase cosmogônico, no qual fontes de água viram lugares sagrados.

Essa misticidade é tão íntima do Cariri que enraizou-se a ponto de, milhares de anos depois, brotar como religiosidade. Todos conhecemos o Cariri de Padre Cícero, mas é possível que poucos saibamos que essa fé, essa “busca por transcendência”, vem de muito antes do cristianismo implantado pelos colonizadores.

A verdade é que o aspecto arqueológico do Cariri ainda carece de muito investimento. O IAC tem uma boa estrutura de pesquisa, mas demanda mais financiamento de projetos, mais escavações e mais profissionais focados em estudar os primeiros povos caririenses.

 

 

Exemplo de religiosidade como herança

Nascido em Inhumas, quando o agora bairro de Santana do Cariri (CE) ainda era considerado como distrito, Carlos Eduardo de Sousa, 37, sempre foi muito conectado à religiosidade. Ele morava em torno da cruz de Menina Benigna e cresceu fazendo trilhas e acompanhando romarias que chegavam e ultrapassavam a região.

Em 2015, após trabalhar por dez anos na administração do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, dedicou-se a criar o Memorial Beata Benigna. Desde então, é presidente da Associação Memorial Beata Benigna.

Na pequena casa com paredes de pedra Cariri, o memorial expõe artefatos que pertenceram à Menina Benigna, como a máquina de costura que fez os vestidos da criança, os santinhos de sua casa e materiais do local de morte dela. Além disso, os administradores recolheram fotos de pessoas que conviveram com Benignas: a professora, as colegas de classe e familiares. Os que estavam vivos durante esse resgate histórico ainda contribuíram com relatos sobre Benigna.

"O turismo religioso tem ganhado grande proporção", explica o artesão. Enquanto Padre Cícero foi o motivador das romarias para o Crato e Juazeiro do Norte, é Benigna que estimula a fé para Santana do Cariri. Por isso, Carlos Eduardo e a associação têm trabalhado para envolver a comunidade para que seja cuidadora e transmissora das histórias da menina que deve se tornar a primeira beata cearense. "Quem tem que contar a história do nosso município é o povo de Santana", defende.

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A história surgiu de lendas

O território encantado dos Cariris tem alguns começos. Um deles está em Maara, uma princesa transformada em serpente. Maara era filha do rei Manacá e da rainha Jurema, e usava da sua beleza para seduzir e fazer o mal. Como castigo pelo seu comportamento, o rei Manacá a transformou em uma serpente, mantendo apenas seu rosto e longos cabelos negros, e a enviou para as profundezas das águas.

A partir de então, Maara passou a guardar a Ponte de Pedra, uma ponte natural próxima a Nova Olinda (CE) que dá acesso à Torre do Castelo Encantado. No entanto, quando é noite de São João, há quem diga avistar uma mulher indígena belíssima, com corpo de serpente, cantando músicas enfeitiçadas…

Torre do Castelo Encantado.(Foto: AURELIO ALVES)
Foto: AURELIO ALVES Torre do Castelo Encantado.

Maara faz parte da mitologia Kariri sobre a origem do povo a partir da lagoa encantada, fazendo referência aos reservatórios de água da Chapada do Araripe. O mito é concretizado por cenários existentes: formações geológicas que compõem o “Cariri encantado”, como a Ponte de Pedra e a Pedra da Torre (a torre do Castelo Encantado). E foi a partir dessas lendas que a arqueologia surgiu na região.

“Se você é capaz de compreender as relações dessa geomorfologia com as lendas, você chega aos materiais arqueológicos”, diz Heloísa. Por trás dessa fala, há 35 anos de trajetória dos músicos Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde (1966-2017).

 

 

A relação mitológica e arqueológica é indissociável quando se pensa em estudar o Cariri, reforça Alemberg, criador da Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri (FCG). “(A mitologia) é um instrumento de imersão na história do lugar. O povo chama de pedagogia, a gente chama de vivência”, afirma.

Ao lado da esposa Rosiane, ele começou em 1983 um trabalho de resgate, identificação e catalogação de lendas do Cariri, em uma abordagem musical. Isso porque o casal transformava essas histórias em música, usando as características sonoras, ambientais e geológicas da região. Veja uma das músicas reunidas no vinil A Lenda, da Fundação Casa Grande:

Foi justamente nessa busca por mitos repassados pela tradição oral que eles passaram a redescobrir sítios lito-cerâmicos e de artes rupestres que já davam indícios de existência na infância do casal. Em 1970, relembra, o pai de Alemberg encontrou várias igaçabas indígenas durante a construção de um campo de futebol em Nova Olinda. Enquanto isso, Rosiane vez ou outra encontrava cachimbos indígenas no pé da serra, em Santa Fé.

“Se a mitologia é o berço, a arqueologia é o cemitério”, compara o músico. Para ele, o entendimento da lenda viabiliza a percepção do Cariri como berço cultural do Nordeste, como um território além do Ceará, do Piauí e de Pernambuco. Os mitos, todos fragmentados e ao mesmo tempo “equidistantes” da geomorfologia local, são a metáfora perfeita para o que um dia a região foi para o mundo: um ponto central, originário. “É como os continentes, que agora estão separados, mas um dia foram um só”, equipara.

 

 

A revelação do Cariri parte do povo

Enquanto as lendas e a religiosidade (ou a misticidade, a fé) são herdadas desses povos indígenas, também é possível dizer que o Cariri é um território único por causa da relação cultura-natureza. “Sendo nascido e criado aqui, nesse território, para mim a Chapada do Araripe não é do Ceará, não é do Pernambuco, não é do Piauí… É um território que tem identidade própria”, explica Ricardo Borges, guia de turismo caririense.

“Eu considero até que as pessoas aqui nascidas tem como ancestral os povos Kariris. Nós, hoje, ainda somos os povos Kariris, os habitantes originários da Chapada. Observando em dias atuais, nós não temos uma característica muito própria do povo do Ceará, do Pernambuco, nem tampouco do Piauí. Se a gente for acompanhar historicamente o movimento do que aconteceu aqui, aqui acontece sempre, desde o período da colonização, uma história de resistência.”

 

 

E assim como o passado pré-histórico desses povos originários ainda precisa ser mais estudado e desvendado, a cultura do Cariri presente pede por revelação. Para Ricardo, o território ainda carece de reconhecimento patrimonial por parte do Estado, tendência vinda da colonização. “(Na época da colonização), a cultura teve que ficar oculta. Porque o Kariri não aceitou a colonização, mas se ocultou, ficou na dimensão do encanto. Existe uma força externa que insiste em manter oculta a identidade desse povo da Chapada do Araripe.”

No entanto, o trabalho da população ― seja por meio das instituições de pesquisa, seja pela tradição popular materializada em mestres de cultura ou pelos contadores do cotidiano ― é revelar o Cariri.

Talvez por isso exista um esforço de inclusão das comunidades no estudo e na produção do conhecimento técnico e popular do território. E isso se materializa em um museu de cada vez.

Sobre identidade e crescimento: a pré-história na vida cotidiana, o episódio 3 será publicado semana que vem, dia 2 de maio.

O especial Cariri Pré-Histórico foi lançado em 18 de maio e inclui mais uma reportagem especial, o webdocumentário Pré-Histórico: vida, cultura e memória, três podcast que começam a ser publicados no dia 28 de abril e uma live que vai ar na também na quinta-feira, 28.

 

 

Uma semana para o Cariri é pouco

Dos dias 7 a 11 de março, a reportagem do O POVO Mais esteve no Cariri para produzir o especial Cariri Pré-Histórico. Os viajantes foram o motorista Francisco Aurélio, a produtora Luana Sampaio, o repórter fotográfico Aurélio Alves e a repórter Catalina Leite. Que tal conhecer a rota da viagem no mapa abaixo e, descendo um pouco mais a página, acessar os diários de bordo da produção?

 

 

 

MENDONÇA, Rosiane Limaverde Vilar. Os registros rupestres da Chapada do Araripe, Ceará, Brasil. 2006. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco. Disponível em: https://attena.ufpe.br/handle/123456789/671 

 

Expediente

Edição O POVO Mais:Fátima Sudário e Regina Ribeiro
Edição de Design:Cristiane Frota
Texto:Catalina Leite
Identidade Visual:Isac Bernardo
Recursos Digitais:Catalina Leite
Fotografias:Aurélio Alves

Casa do Memorial Beata Menina Benigna, em Santana do Cariri, com paredes de pedra Cariri.
Casa do Memorial Beata Menina Benigna, em Santana do Cariri, com paredes de pedra Cariri.

Exemplo de religiosidade como herança

Nascido em Inhumas, quando o agora bairro de Santana do Cariri (CE) ainda era considerado como distrito, Carlos Eduardo de Sousa, 37, sempre foi muito conectado à religiosidade. Ele morava em torno da cruz de Menina Benigna e cresceu fazendo trilhas e acompanhando romarias que chegavam e ultrapassavam a região.

Em 2015, após trabalhar por dez anos na administração do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, dedicou-se a criar o Memorial Beata Benigna. Desde então, é presidente da Associação Memorial Beata Benigna.

Na pequena casa com paredes de pedra Cariri, o memorial expõe artefatos que pertenceram à Menina Benigna, como a máquina de costura que fez os vestidos da criança, os santinhos de sua casa e materiais do local de morte dela. Além disso, os administradores recolheram fotos de pessoas que conviveram com Benignas: a professora, as colegas de classe e familiares. Os que estavam vivos durante esse resgate histórico ainda contribuíram com relatos sobre Benigna.

"O turismo religioso tem ganhado grande proporção", explica o artesão. Enquanto Padre Cícero foi o motivador das romarias para o Crato e Juazeiro do Norte, é Benigna que estimula a fé para Santana do Cariri. Por isso, Carlos Eduardo e a associação têm trabalhado para envolver a comunidade para que seja cuidadora e transmissora das histórias da menina que deve se tornar a primeira beata cearense. "Quem tem que contar a história do nosso município é o povo de Santana", defende. 

A história surgiu de lendas

O território encantado dos Cariris tem alguns começos. Um deles está em Maara, uma princesa transformada em serpente. Maara era filha do rei Manacá e da rainha Jurema, e usava da sua beleza para seduzir e fazer o mal. Como castigo pelo seu comportamento, o rei Manacá a transformou em uma serpente, mantendo apenas seu rosto e longos cabelos negros, e a enviou para as profundezas das águas.

A partir de então, Maara passou a guardar a Ponte de Pedra, uma ponte natural próxima a Nova Olinda (CE) que dá acesso à Torre do Castelo Encantado. No entanto, quando é noite de São João, há quem diga avistar uma mulher indígena belíssima, com corpo de serpente, cantando músicas enfeitiçadas…

Maara faz parte da mitologia Kariri sobre a origem do povo a partir da lagoa encantada, fazendo referência aos reservatórios de água da Chapada do Araripe. O mito é concretizado por cenários existentes: formações geológicas que compõem o "Cariri encantado", como a Ponte de Pedra e a Pedra da Torre (a torre do Castelo Encantado). E foi a partir dessas lendas que a arqueologia surgiu na região.

"Se você é capaz de compreender as relações dessa geomorfologia com as lendas, você chega aos materiais arqueológicos", diz a arqueóloga Heloísa Bitu. Por trás dessa fala, há 35 anos de trajetória dos músicos Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde (1966-2017).

A relação mitológica e arqueológica é indissociável quando se pensa em estudar o Cariri, reforça Alemberg Quindins, criador da Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri (FCG). "(A mitologia) é um instrumento de imersão na história do lugar. O povo chama de pedagogia, a gente chama de vivência", afirma.

Ao lado da esposa Rosiane, ele começou em 1983 um trabalho de resgate, identificação e catalogação de lendas do Cariri, em uma abordagem musical. Isso porque o casal transformava essas histórias em música, usando as características sonoras, ambientais e geológicas da região.

Foi justamente nessa busca por mitos repassados pela tradição oral que eles passaram a redescobrir sítios lito-cerâmicos e de artes rupestres que já davam indícios de existência na infância do casal. Em 1970, relembra, o pai de Alemberg encontrou várias igaçabas indígenas durante a construção de um campo de futebol em Nova Olinda. Enquanto isso, Rosiane vez ou outra encontrava cachimbos indígenas no pé da serra, em Santa Fé.

"Se a mitologia é o berço, a arqueologia é o cemitério", compara o músico. Para ele, o entendimento da lenda viabiliza a percepção do Cariri como berço cultural do Nordeste, como um território além do Ceará, do Piauí e de Pernambuco. Os mitos, todos fragmentados e ao mesmo tempo "equidistantes" da geomorfologia local, são a metáfora perfeita para o que um dia a região foi para o mundo: um ponto central, originário. "É como os continentes, que agora estão separados, mas um dia foram um só", equipara.

A revelação do Cariri parte do povo

Enquanto as lendas e a religiosidade (ou a misticidade, a fé) são herdadas dos povos indígenas, também é possível dizer que o Cariri é um território único por causa da relação cultura-natureza. "Sendo nascido e criado aqui, nesse território, para mim a Chapada do Araripe não é do Ceará, não é do Pernambuco, não é do Piauí… É um território que tem identidade própria", explica Ricardo Borges, guia de turismo caririense.

"Eu considero até que as pessoas aqui nascidas tem como ancestral os povos Kariris. Nós, hoje, ainda somos os povos Kariris, os habitantes originários da Chapada. Observando em dias atuais, nós não temos uma característica muito própria do povo do Ceará, do Pernambuco, nem tampouco do Piauí. Se a gente for acompanhar historicamente o movimento do que aconteceu aqui, aqui acontece sempre, desde o período da colonização, uma história de resistência."

E assim como o passado pré-histórico desses povos originários ainda precisa ser mais estudado e desvendado, a cultura do Cariri presente pede por revelação. Para Ricardo, o território ainda carece de reconhecimento patrimonial por parte do Estado, tendência vinda da colonização. "(Na época da colonização), a cultura teve que ficar oculta. Porque o Kariri não aceitou a colonização, mas se ocultou, ficou na dimensão do encanto. Existe uma força externa que insiste em manter oculta a identidade desse povo da Chapada do Araripe."

No entanto, o trabalho da população - seja por meio das instituições de pesquisa, seja pela tradição popular materializada em mestres de cultura ou pelos contadores do cotidiano - é revelar o Cariri.

Talvez por isso exista um esforço de inclusão das comunidades no estudo e na produção do conhecimento técnico e popular do território. E isso se materializa em um museu de cada vez. 

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