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A vida pós-AVC: impacto e tratamento para os sobreviventes
Ciência e Saúde

A vida pós-AVC: impacto e tratamento para os sobreviventes

Acidente vascular cerebral está entre as causas mais comuns de mortes no País. Até os primeiros 15 dias deste mês de junho, a doença matou mais pessoas que a pandemia de Covid-19. Conheça história de pessoas que sobreviveram ao AVC
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Hospital Geral de Fortaleza tem ala especializada para o tratamento de pacientes com AVC (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Hospital Geral de Fortaleza tem ala especializada para o tratamento de pacientes com AVC

 

 

O acidente vascular cerebral, conhecido popularmente como AVC ou derrame, está entre as causas mais comuns de mortes no País. A doença decorre da alteração do fluxo de sangue ao cérebro e é responsável pela morte de células nervosas da região cerebral atingida. Nos primeiros cinco meses e meio deste ano (até 15 de junho), o AVC matou mais pessoas que a pandemia de Covid-19. No Brasil, 48.735 morreram de acidente vascular cerebral, enquanto 44.508 morreram através da contaminação por coronavírus. As informações são do Portal da Transparência do Registro Civil Nacional.

Apesar da alta taxa de mortalidade, a doença pode ser tratada, e até prevenida. O cearense e estudante Gabriel Bezerra, de 23 anos, viveu na pele as dores e as preocupações causadas pelo AVC. Tudo começou na infância, quando Gabriel desenvolveu a Malformação Arteriovenosa (MAV), uma doença congênita (presente desde o seu nascimento) de uma ligação anormal entre artérias e veias, geralmente no cérebro ou na coluna vertebral. As consequências da MAV vieram aos 13 anos de idade.

Gabriel Bezerra teve um AVC aos 13 anos. Atualmente, faz internato no Hospital Mental de Messejana(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Gabriel Bezerra teve um AVC aos 13 anos. Atualmente, faz internato no Hospital Mental de Messejana

“Durante o período em que eu comecei a realizar exercícios de musculação, houve um dia que eu senti a maior dor de cabeça da minha vida, e comecei a chorar. Precisei ir embora para casa imediatamente. Quando eu cheguei, estava sonolento e acabei optando por dormir. Eu acordei depois de sete horas de sono, ainda estava com essa dor intensa. Meus pais me levaram a uma emergência”, relata o estudante.

Ao chegar à emergência, o adolescente foi diagnosticado com virose. A família do Gabriel continuou inquieta a respeito do estado de saúde e do diagnóstico do jovem, então eles resolveram retornar a uma unidade de saúde. Lá, o médico acabou pedindo uma tomografia: “O diagnóstico de virose foi muito estranho, mas eu entendo que ninguém acreditava que isso que eu sentia poderia se tratar de um AVC”.

“No segundo contato com o profissional de saúde, o médico pediu uma tomografia, mas ficou muito descontente pelo fato de estarmos voltando. Após a tomografia, foi revelado que eu estava com um AVC hemorrágico. Naquele momento, eu fui internado no mesmo instante."

A partir daquele momento, o jovem relata que precisou conviver com o medo de alguma complicação súbita. Gabriel conta que o período pós-AVC foi difícil. Foram cerca de dois meses sem frequentar a escola, além de desenvolver a hiposmia, perda completa ou parcial do olfato.

vida pós-avc(Foto: Isac Bernardo)
Foto: Isac Bernardo vida pós-avc

Esse episódio influenciou o jovem a querer cursar Medicina: “Foi influência da minha condição. Na época que tive o acidente vascular, eu senti muita curiosidade sobre o assunto. Eu achava muito engenhoso como o neurocirurgião conseguiu solucionar o problema”.

“Eu lembro da frustração que foi voltar para casa com essa história de um diagnóstico de uma virose em meio a um AVC. Na época nós precisávamos insistir para que fizessem exames de imagem, para poder diagnosticar de fato o que estava acontecendo e excluir a hipótese da virose.”

A lição do que aconteceu na unidade de saúde, há dez anos, o estudante carrega hoje: “Por que não escutar a queixa do paciente e dar total atenção? Pode ser que o profissional de saúde ache a insatisfação do paciente irrelevante, mas, para ele, o sintoma é muita coisa. E se não for realmente relevante, a gente [profissionais de saúde] deve explicar o porquê daquele sintoma”, finaliza.

 

 

AVC é uma das doenças que mais mata no Brasil

O AVC faz parte da lista de principais doenças que causaram mortes no Brasil nos últimos anos. Só em relação às causas cardíacas, o AVC já ocupa a terceiro posição em motivos de óbitos no Brasil, neste primeiro semestre de 2022. Das 611.020 mortes registras pelo Portal da Transparência do Registro Civil Nacional, 88.914 foram de pneumonia, 77.391 de septicemia (infecção no sangue) e 48.735 de AVC. A última atualização feita pela plataforma foi no dia 15 de junho de 2022, às 6h50min.

 

 Principais causas de óbitos no Brasil


 

Acesso ao sistema de saúde no Ceará

Ao O POVO, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) informou que não tem o número de atendimentos a pacientes com a doença, mas realiza o levantamento dos número de internações por AVC:

 

A Sesa também informou que mais de 50% das internações no Ceará são no Hospital Geral de Fortaleza (HGF), pois lá funciona uma unidade de referência estadual para o tratamento. Além disso, segundo a Secretaria, o crescimento das internações reflete o aumento da capacidade assistencial da Rede, sobretudo com a abertura dos Hospitais Regionais.

Em nota, o HGF informou que possui emergência de porta aberta com equipe disponível 24 horas por dia para realização de procedimentos em AVC. Os pacientes chegam por livre demanda ou por meio de encaminhamentos de outras unidades de saúde de todo o Estado. Anualmente, mais de duas mil pessoas são atendidas no hospital. No Estado, a Sesa também atende pacientes com AVC por meio dos hospitais Regional do Sertão Central (HRSC), em Quixeramobim, e Regional do Cariri (HRC), em Juazeiro do Norte.

 

 

Desmiolada

“Para quem já teve um Acidente Vascular Cerebral, eu digo que a vida não acabou. Parece que acabou, mas não acabou. Existe vida pós-AVC”. Este é o recado da Camila Fabro, também conhecida na internet como desmiolada. Camila é curitibana, formada em Letras e sobrevivente de dois AVCs. Como ela mesmo costuma se definir, Camila é: “Desmiolada em prol da comunidade avecista (@camiladesmiolada)”.

Camila Fabro é a @desmiolada nas redes sociais(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Camila Fabro é a @desmiolada nas redes sociais

A escritora teve seu primeiro AVC em 2019, aos 34 anos. O segundo ocorreu nove dias após o primeiro. O resultado desses eventos foram muitas sequelas cognitivas, problemas de memória de curto prazo, paralisia na parte esquerda do corpo, perda parcial da visão do olho esquerdo, agnosia visual (perda da capacidade de identificar objetos), disfagia (dificuldade para engolir) e epilepsia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) relata que, globalmente, mais pessoas morrem a cada ano de doenças cardiovasculares do que por qualquer outra causa.

De acordo com a médica e neurologista Adriana Barbastefano, o acidente vascular cerebral isquêmico é o mais comum. “Trata-se do entupimento da artéria, o que obstrui ou reduz o fluxo sanguíneo, causando a falta de circulação vascular na região. Isso pode acontecer em decorrência do processo de envelhecimento, diabetes, hipertensão arterial e aumento do depósito de colesterol nas artérias”, comenta.

Já o acidente vascular cerebral hemorrágico ocorre quando um vaso se rompe e há extravasamento de sangue para o interior do cérebro. “O hemorrágico pode acontecer quando vasos mais frágeis se rompem na hipertensão arterial, durante um sangramento ou em decorrência de um aneurisma.”

Durante o período em que teve AVC, Camila perdeu massa encefálica. O choque veio quando mostraram para ela a tomografia da cabeça: "A primeira coisa que eu pensei foi: 'Nossa, eu me sustento com base na minha inteligência. E agora? O que eu vou fazer?'. Eu achava que minha vida tinha acabado”.

Mas a “falta” de miolos não foi capaz de parar a curitibana. Ela conta que essa alcunha vem de um “auto-capacitismo”. Ela percebeu que aquela alteração do fluxo de sangue ao cérebro, que poderia destruir a sua vida, também poderia ser o mesmo motivo para incentivá-la a ressignificar a própria existência. 

“Primeiro veio o AVC transitório (sintomas que antecedem a doença). No dia 10 de maio de 2019, eu tive uma sensação de um estalo na nuca. Nesse dia, eu senti uma dor de cabeça muito forte e fui ao hospital. Os médicos me colocaram na tomografia e não acharam nada. Pensava-se que se tratava de uma meningite.”

 

 

AVC Transitório


Adriana Barbastefano é médica com residência em Neurologia pela Universidade de São Paulo (USP)(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Adriana Barbastefano é médica com residência em Neurologia pela Universidade de São Paulo (USP)

O episódio isquêmico transitório é quando os sintomas neurológicos se instalam e se revertem. "É quando a obstrução não chega a ocorrer totalmente. O quadro neurológico é revertido em algumas horas. É como se fosse uma ameaça de AVC. Isso deve ser prontamente investigado e tratado", explica a neurologista Adriana Barbastefano.

Não são todos os pacientes que têm o transitório, mas muitos apresentam a mesma sensação de AVC alguns dias antes do acidente vascular de fato. Eles sentem enjoo, dores de cabeça muito fortes e perda de mobilidade. “Na segunda vez em que tive esse transitório, eu não conseguia andar”, conta Camila Fabro.

Usando as palavras da ativista pela causa avecista para explicar, o AVC transitório é uma espécie de "amostra-grátis" de um AVC que está prestes a acontecer. “É o corpo avisando que em breve ele entrará em um colapso fatal e, para que a mensagem seja claramente decifrada, ele emite os mesmos sinais do que realmente está para acontecer”, diz Camila.

De acordo com a Academia Brasileira de Neurologia e o Ministério da Saúde, o paciente deve estar atento aos sintomas e sinais de alerta do acidente vascular.

 

Fique atento a sinais de alerta que podem indicar AVC

 

 

AVC hemorrágico e Isquêmico

Infelizmente para Camila, houve piora em relação à condição clínica. Quatro dias depois do AVC transitório, ela teve dor de cabeça: “Foi a dor de cabeça mais intensa que tive, de uma maneira que eu não conseguia respirar. Eu estava sozinha em casa. Eu lembro de ter pedido ajuda em um grupo de WhatsApp. Depois de um tempo, uma amiga veio me ver e me levar para o hospital. Naquele momento já tinha tido AVC. Os médicos fizeram a tomografia e viram que minha cabeça estava cheia de sangue”.

O que Camila sentia era fruto de um aneurisma, uma dilatação anormal de uma artéria. Os médicos que a acompanharam não permitiram que a família tivesse muita esperança em relação à recuperação da escritora: “Foi necessário fazer uma cirurgia, em que eu tinha pouca chance de sobreviver, cerca de 12%, segundo os médicos. Eu sobrevivi ao AVC hemorrágico, mas nove dias depois eu tive um AVC isquêmico derivado da cirurgia. Não é bem derivado da cirurgia, mas eu tinha muito sangue na cabeça, e o meu vaso sanguíneo se comprimiu”.

vida pós-avc(Foto: Isac Bernardo)
Foto: Isac Bernardo vida pós-avc

O Ministério da Saúde e a Academia Brasileira de Neurologia elencam alguns sintomas que podem se diferenciar nos casos de AVC. Em relação ao acidente vascular isquêmico pode haver tontura, perda de equilíbrio ou de coordenação.

Os ataques isquêmicos podem se manifestar com alterações na memória e na capacidade de planejar as atividades diárias, bem como a negligência. Neste caso, o paciente ignora objetos colocados no lado afetado, tendendo a desviar a atenção visual e auditiva para o lado normal, em detrimento do afetado.

Aos sintomas do acidente vascular hemorrágico intracerebral podem-se acrescentar náuseas, vômito, confusão mental e, até mesmo, perda de consciência. O acidente vascular hemorrágico, por sua vez, comumente é acompanhado por sonolência, alterações nos batimentos cardíacos e na frequência respiratória e, eventualmente, convulsões.

 

Fatores de risco para o AVC

 

Existem fatores que podem facilitar o desencadeamento de um Acidente Vascular Cerebral e que são inerentes à vida humana, como o envelhecimento. Pessoas com mais de 55 anos possuem maior propensão a desenvolver o AVC.

Características genéticas, como pertencer à raça negra, e história familiar de doenças cardiovasculares também aumentam a chance de AVC. Esses indivíduos, portanto, devem ter mais atenção e fazer avaliações médicas mais frequentes.

O Ministério da Saúde aconselha que, se uma pessoa achar que está tendo um AVC, é preciso se dirigir com urgência ao serviço de emergência do hospital mais próximo para um diagnóstico completo e tratamento.

 

 

Cuidado com os pacientes de AVC

Já quanto ao tratamento e cuidados com quem teve AVC, a neurologista Adriana Barbastefano conta que as sequelas demandam atenção especial e específica, a partir de uma equipe multiprofissional (formada por neurologistas, enfermeiros, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais).

“A pessoa precisa fazer fisioterapia quando apresenta déficit motor e falta de coordenação motora. Deve haver um trabalho de médio e longo prazo. Às vezes, as pessoas tendem a perder a paciência achando que não estão melhorando, mas o processo é lento e progressivo. Em relação à fala, a gente recomenda a fonoaudiologia.”

Camila Fabro conta que precisou lidar com diferentes tratamentos: “Com a disfagia, eu usei a sonda nasogástrica. Fiz alguns exercícios com algumas pessoas que eu conheci na internet, pois não tive condições de pagar por tratamentos mais específicos. Tive acompanhamento com uma neuropsicóloga particular, que topou parcelar o tratamento, e fiz fisioterapia pelo plano de saúde”.

 

 

Renasce uma desmiolada com ajuda de grupos de apoio

No período de recuperação, Camila estava em casa e contava com a ajuda de uma amiga enfermeira. O que mais pesava naqueles dias era a solidão. “Eu estava muito sozinha. Por me sentir solitária, eu entrei em alguns grupos de apoio e fui dividindo experiências com os outros membros e com as pessoas nas minhas redes sociais. Eu percebi que eu curtia bastante aquela troca, apesar de eu ainda escrever meio mal por causa das sequelas do AVC.”

Nesses grupos as pessoas começaram a compartilhar e se identificar com as publicações da escritora. Muitos diziam: “É isso que eu estou sentindo”. Depois de um ano de AVC veio o blog e as contas em outras redes sociais.

“No começo eram publicações sobre as minhas percepções a respeito do que eu estava vivendo. Com a minha interação com mais pessoas nos grupos de apoio, elas me deram mais conteúdo. O que tem no meu blog e nas redes sociais, na minha visão, é um diário de bordo. Era o que eu gostaria de ver quando eu tive um AVC. Estar em uma página para entender o que está acontecendo comigo. Quando você vê AVC na internet é só morte. É terrível. Você fica achando que vai morrer. Você não entende o que está acontecendo.”

Apesar de algumas dificuldades, como se vestir sozinha, Camila se define como muito bem recuperada. “Eu consigo falar bem, ter boa memória, inclusive para lembrar do horário da entrevista com o O POVO. Antes eu não lembrava. Eu acredito que ando bem. Às vezes eu manco um pouquinho. As pessoas até acham que eu estou com problema no pé. Já a mão às vezes fica fechada, então tenho que lembrar de abrir”, comenta orgulhosa.

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