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A Psicanálise vai na contramão da sociedade de consumo
Ciência e Saúde

A Psicanálise vai na contramão da sociedade de consumo

Resistência
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Psicanalista Maria Rita Kehl (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil Psicanalista Maria Rita Kehl

A Universidade de Fortaleza (Unifor) realizou recentemente o VII Simpósio Internacional de Psicanálise, que homenageou a psicanalista Maria Rita Kehl. O evento foi balizado pelo texto centenário de Sigmund Freud intitulado "As Resistências à Psicanálise", um clássico que continua atual para o aprofundamento da formação dos psicanalistas e do que ocorre em relação ao trabalho realizado pelos profissionais da área.

Em entrevista ao O POVO, Maria Rita Kehl falou um pouco sobre sua trajetória. Na sua avaliação, a Psicanálise está na moda. Eis alguns dos principais pontos da entrevista.

O POVO - Como você analisa a sua trajetória como analista?

Maria Rita Kehl - Nossa, é difícil analisar minha própria trajetória como analista. Posso dizer que, no começo, me tornei analista sem ter planejado. Eu escrevia para um jornal aqui de São Paulo quando uma colega jornalista, sabendo que eu vinha da Psicologia, me pediu uma consulta. Aceitei, depois de dizer a ela que nunca tinha trabalhado como analista, e ela respondeu: "vamos tentar". Claro que fui buscar supervisão (já fazia minha análise também). Ela me encaminhou uma amiga, que me indicou para um amigo etc. Eu mesma ainda não tinha me analisado. Mas, a partir dessas duas demandas, procurei um analista e também comecei a fazer supervisões. Foi tudo muito improvisado, mas não no sentido de uma bagunça. Levei muito a sério e fiquei muito grata às pessoas que confiaram suas análises a mim.

OP - Como você vê os movimentos de resistência da Psicanálise e o crescimento de abordagens tidas por algumas áreas médicas como mais funcionais?

MRK - Acho que foi Nelson Rodrigues quem disse: "o autoconhecimento é sempre má notícia". Mesmo quem procura uma análise para esclarecer suas dores, suas inibições e seus eventuais fracassos, resiste também ao confronto consigo mesmo/a que a Psicanálise propõe. Hoje assistimos, um pouco preocupados/as, ao advento de novas formas de "cura" que não têm nada a ver com o empenho em entender as causas de seu sofrimento psíquico. Criam-se versões "motivacionais" do que seria um processo de cura psicanalítica. São terapias cujo foco é levantar a autoestima da pessoa que está sofrendo, do tipo (caricato, a meu ver) "you are ok". A Psicanálise vai na contramão da sociedade de consumo: aceita e investiga a dor de quem busca um analista, sabe que o "tratamento" é de longo prazo, não procura "otimizar" o processo. O sujeito que busca análise sabe que vai enfrentar fantasias e desejos inconscientes, alguns dos quais bem perturbadores. Essa é a "má notícia" do autoconhecimento.

OP - E quais os caminhos para os analistas, neste momento?

MRK - Não tenho ideia. Só posso dizer que o único caminho que me ocorre é o de escutar atentamente seus analisandos, não dar conselhos (o povo diz que se conselho fosse bom, a gente não dava de graça), acolher as dores e, quando essas parecerem tão insuportáveis que o analista tema uma tentativa de suicídio, oferecer (este é um dispositivo que improvisei e que funcionou muito bem no caso de analisandos em risco de suicídio) algumas sessões curtas diárias para que o sujeito não se sinta acossado pela angústia.

OP - Você chegou a sofrer ataques virtuais de movimentos identitários. Como você entende esses momentos de lugar de fala e lugar de cale-se?

MRK - A identificação com o semelhante é um movimento psíquico muito bonito: queremos compreender o outro, assimilar as qualidades desse outro que nos pareçam admiráveis e, por isso, almejamos conquistar. Esse movimento também vem acompanhado da solidariedade. Se eu entendo a dor do outro, quero apoiá-lo também. O problema surge - e às vezes se manifesta de forma violenta - quando as pessoas só aceitam identificar-se com quem pensa e age de forma idêntica a elas. E também com quem vive/viveu experiências iguais. Muitas vezes, essas pessoas recusam-se a tentar compreender aquelas que vêm de experiências diferentes. Ora, o que nos enriquece psiquicamente não é fazer contato apenas com quem pensa e age igual a nós. O que nos enriquece é o encontro com o "semelhante na diferença". Mas me parece que hoje está crescendo uma tendência de só se aceitar e só se dialogar com quem pensa como nós, com quem viveu experiências idênticas às nossas. Se fosse assim, mulheres e homens jamais poderiam se entender. A experiência de tornar-se mulher não é, nem poderia ser, idêntica à de tornar-se homem. A experiência de homens e mulheres gays é muito diferente da de homens e mulheres heterossexuais, e a experiência de homens e mulheres brancos é muito diversa da de homens e mulheres negros. Mas isso não deve nos isolar em "nichos narcísicos" (cada um fechado na sua caixinha, recusando assimilar o que o outro nos traz como novidade). A sociedade se empobrece a partir de atitudes como essas. A riqueza simbólica de uma sociedade talvez se alimente desse duplo movimento: o de ser capaz de inventar um modo de vida que nos pareça criativo e progressista e, ao mesmo tempo, assimilar traços de outros modos de vida que nos pareçam estranhos, no sentido da novidade, daquilo que requer um esforço para assimilar.

 

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