Em um mundo que clama por saúde mental, os sintomas se proliferam. Há crises de depressão e ansiedade, dificuldades para engendrar vínculos afetivos, violência exacerbada, proliferação de diagnósticos e questionamentos profundos sobre os saberes no âmbito das ciências humanas. A Psicanálise, dentro de todo esse contexto, também é posta em xeque.
Há indagações sobre os novos arranjos sintomáticos e até se os seus dispositivos poderiam oferecer algo pertinente àquele que busca um analista. Com o avanço das pesquisas de neuroimagens, o surgimento de alguns "postulados científicos" e o lançamento de novos medicamentos por uma indústria farmacêutica atenta às mudanças dos dias atuais, surgem oposições a uma suposta falta de fundamentação de terapias, dentre as quais a de orientação psicanalítica.
Embora a realidade atual tenha suas próprias características, os movimentos de resistência à Psicanálise não são novidade. Há mais de 100 anos, Sigmund Freud já se deparava com questionamentos semelhantes, nos quais havia confronto entre um biologismo ortodoxo e o estudo das questões psíquicas.
Conforme lembra o psicanalista Thiago Costa, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), Freud era um neurologista que criou as técnicas da Psicanálise a partir do estudo de mulheres histéricas, demonstrando a existência de uma base psíquica para os sintomas. Ou seja, a questão não era apenas fisiológica. "Havia um problema anímico que voltava para o corpo", afirma.
Freud desenvolveu suas próprias teorias, focando na psique e na repressão de desejos e traumas. "Na época, Freud relacionou a histeria à moral sexual", acrescenta o professor. Foi ouvindo as histéricas, que diziam "deixe-me falar", que foi criado um método cujas ferramentas como a associação livre do paciente e a atenção flutuante do analista são utilizadas até hoje.
O tempo passou, muitas tecnologias foram desenvolvidas. Apesar disso, o embate entre as teorias que levam em conta apenas os aspectos físicos, deixando de lado as relações psíquicas, permanece.
Os conflitos entre teorias e abordagens passaram a cobrar uma psicologia baseada em evidências, com produção científica, à qual a Psicanálise também teve de se adaptar, mas respeitando as suas características. Thiago Costa ressalta a produção atual de pesquisas e artigos científicos, englobando fenômenos como autolesões, mulheres vítimas de violência, racialização e questões culturais, com a construção de saberes e a busca de respostas para problemas apresentados pela sociedade os quais ultrapassam o biológico. "Precisamos de critérios, além de uma Psicanálise que ultrapasse o divã, que trabalhe com a violência de gênero, que faça a escuta de pessoas em situação de crise".
O professor e psicanalista Rafael Ayres, também da Unifor, destaca a relevância de se voltar aos textos clássicos como base para um entendimento dos fenômenos atuais. Ele lembra também que o pai da Psicanálise utilizou o conceito de "resistência", originário da Física, para identificar a dificuldade dos pacientes de entrar em contato com os seus incômodos. Muitos desses conteúdos estavam reprimidos inconscientemente e eram apresentados através de esquecimentos, interrupções na fala, repetições no discurso e até ausências no tratamento - questões até hoje pertinentes e reveladoras do mal-estar contemporâneo.
Rafael sugere ainda que os escritos de Freud de 1925 devam ser articulados com outros de 1917, nos quais se revelam as grandes feridas narcísicas da Humanidade apresentadas a partir das grandes descobertas: a Terra não ser o centro do universo (a partir dos estudos de Nicolau Copérnico e da astronomia moderna); o ser humano não ser o centro das espécies animais (a partir dos estudos de Charles Darwin sobre como a constituição física do ser humano era assemelhada à de outras espécies); e o ser humano não ser "dono de sua própria casa" (nas palavras do próprio Freud, retirando a ideia de que a pessoa tem controle sobre sua vida psíquica).
Como reforça o professor, a partir da construção conceitual do inconsciente, Freud sugere que as ações do homem são fortemente influenciadas por uma instância que foge ao controle do entendimento racional e ultrapassa o biológico. Assim, o homem teria pulsões, instintos e desejos, com atos produtivos, culturais e ideológicos transmitidos de uma geração a outra, através da qual a geração atual não tem consciência completa das próprias escolhas.
Dentro de toda essa herança histórica, biológica, cultural, consciente e inconsciente, a Psicanálise tem seus divãs muitas vezes postos de cabeça para baixo. Os questionamentos ultrapassam os problemas do excesso de medicação, mas entram nos dilemas éticos, recuperando as referências das tragédias gregas como Antígona, em conflito entre o direito civil (a proibição de enterrar o corpo do irmão na cidade) e o natural (de não aceitar deixar o irmão sem um enterro digno), pagando com a própria vida. Conforme ressalta o professor Rafael, há várias questões que nos levam a uma posição semelhante à de Antígona.
"Pensar os dilemas é uma escolha ética e é [citando o poeta Manoel de Barros] 'transver' o mundo, os detalhes não ditos", sentencia.