Para quem vive de kitesurfe, encarar um rali de downwind é mergulhar na intensidade do esporte em sua forma mais imprevisível. No início de setembro, o Iron Macho, considerado uma das principais kite trips do Brasil, deu início à sua 13ª edição. O circuito percorre mil milhas náuticas — cerca de 1.852 quilômetros — saindo das praias de Pernambuco até chegar a Alcântara, no litoral do Maranhão. A longa travessia, marcada por vento forte, correntezas e diferentes paisagens, atrai kitesurfistas de todas as regiões do Brasil e até mesmo de fora do País. Dentre os participantes deste ano, apenas uma mulher esteve na linha de frente, a mineira Priscila Bartolomeu, empresária de 45 anos.
Desde que descobriu o kitesurfe, Priscila vem acumulando experiências nos principais downwinds do mundo. Assim como tantos outros atletas, ela encontrou no esporte um novo sentido para a vida e passou a fazer das pranchas e das ondas suas confidentes, com as quais tem compartilhado seus principais momentos. Os amigos que fizera velejando ao redor do mundo também se tornaram sua família. Foi ainda por meio do kite que ela construiu uma relação especial com o Ceará; os mares verdes alencarinos se tornaram um porto afetivo na trajetória dela.
Em entrevista ao Esportes O POVO, ainda durante o evento, Priscila compartilhou parte desse caminho e revelou como o kitesurfe deixou de ser apenas lazer para se tornar uma forma de vida.
O POVO – Como começou a sua trajetória no kitesurfe?
Priscila – Foi logo depois do meu divórcio, em 2021. Estava em Jericoacoara e resolvi ir à praia. Chegando lá, vi um kite no mar e pensei: “Nossa, isso parece ser legal”. Então resolvi fazer uma aula e gostei. Também tive muitas dificuldades, aconteceu de tudo para eu desistir. Mas, em um determinado momento, resolvi fazer aulas com um professor no Rio de Janeiro, o Tavinho. Ele me ajudou a ter liberdade velejando. Quando me dei conta, não quero mais saber de outra coisa. O kitesurfe revigora a gente, parece que todos os problemas ficam no mar.
O POVO – Apesar de mineira, você criou uma relação especial com o Ceará. De que forma isso aconteceu?
Priscila – Comecei a praticar kitesurfe pra valer nas lagoas, em Cabo Frio (RJ) e, quando perdi o medo e decidi que era hora de ir para o mar, quis vir para o Cumbuco (praia de Caucaia). Vim e fiz amizade com todos os instrutores daqui só para ganhar confiança para velejar. Desde então, passei a vir para cá todo ano. Eu amo o Ceará. Durante o trajeto do Iron Macho, quando a gente passa por Pernambuco, Rio Grande do Norte etc, vive mais desafios, porque tem vento virado, maré instável e outras coisas. Mas quando a gente chega ao Ceará é tudo perfeito. Por isso lota sempre, porque aqui é o Estado do kitesurfe. O Ceará é minha segunda casa. A vida inteira ouvi meu pai dizer que quando se aposentasse viria morar em Fortaleza, mas ele faleceu sem conhecer o Ceará. Então acho que ele deve estar orgulhoso de mim lá de cima, vendo que eu realizei o sonho dele.
O POVO – Como é para você ser a única mulher velejando no Iron Macho?
Priscila – Por ser a única mulher, tem momentos em que eu me sinto em uma competição comigo mesma para não desistir. Sempre recebo mensagens nas redes sociais dizendo que isso é coisa para homem. Quando comecei a praticar, com 40 anos, disseram que eu estava velha demais para isso e que não iria conseguir. Mas todos aqui me incentivam muito, sempre me lembram da minha evolução no kitesurfe. Quando passamos pelo Rio Grande do Norte, eu sofri um acidente velejando, machuquei a cabeça e recebi um suporte surreal por parte da equipe, assim como em todo momento. E todo esse carinho é o que me ajuda a continuar.
O POVO – Quais foram os principais desafios que você enfrentou no kitesurfe desde que começou a praticar?
Priscila – São muitos, e os desafios são diários. Quando estou em Belo Horizonte, eu pratico outros esportes, como muay thai e musculação, para manter o condicionamento físico, já que lá não tem mar para a gente velejar. E, antes de vir para o Iron Macho, eu tive minha mãe e meu tio hospitalizados e cheguei a ficar nove meses sem velejar. Então este foi um ano muito difícil para mim. Quando decidi participar do Iron Macho, tive receio de não conseguir, mas estou conseguindo e sentindo um estímulo cada vez maior para chegar até o Maranhão.