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André Haguette: Do desafinado ao entoado
Opinião

André Haguette: Do desafinado ao entoado

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André Haguette, sociólogo. Foto: Mauri Melo, em 23/09/2011 (Foto: O POVO)
Foto: O POVO André Haguette, sociólogo. Foto: Mauri Melo, em 23/09/2011

No meu último artigo na Opinião, em 7/10, usei a Bossa Nova como metáfora para caracterizar o Brasil, país do desafino, da incompletude, do desajuste; país onde as coisas nunca se encaixam inteiriçamente, deixando um angustiante sentimento de inacabamento constatável em qualquer instituição ou processo quer seja ele econômico, político, social ou cultural. Em suma, um país constantemente por fazer. Eu terminava minha reflexão escrevendo: "enquanto a Bossa Nova música faz bem, o País do desafino arranha o ouvido, o coração e a mente".

Após ter escrito o artigo, passei oito dias em Québec, Canadá, onde pude confirmar a tese do constante inacabamento de tudo o que existe no Brasil por uma comparação com um país onde, se tudo continua em movimento buscando adaptar-se à roda do tempo ou mesmo simplesmente aperfeiçoando seus processos e instituições, há uma inegável solidez na sua construção projetando segurança e tranquilidade. Essa completude se manifesta no dia a dia da vida, nas coisas mais elementares como a convivência social, os transportes em comum ou o trânsito. Se existem classes sociais, a distância entre elas é limitada de maneira que filhos de médicos, empresários e profissionais liberais de alta patente convivem com filhos de profissionais manuais e operários, compartilhando os mesmos locais de lazer, jogando nos mesmos times nos esportes, frequentando as mesmas escolas, casando-se entre si na maior obviedade do mundo. Assim também na saúde. Há um só sistema de saúde (um SUS) a levar todos aos mesmos médicos ou hospitais, esperando sua vez em filas de atendimento sem outra distinção do que a gravidade dos cuidados necessários.

O país deixa uma sensação de bom funcionamento e boa organização. Tudo parece ter sido executado como planejado; nada é esquecido, interrompido ou abandonado no meio do caminho. Tudo foi construído para a totalidade da população e não somente para grupos sociais privilegiados, embora haja bairros mais ricos do que outros e diferenciados por etnias (chinesa, italiana etc.). Essa organização é reforçada por uma grande disciplina da população em agir de acordo com as leis, as normas ou mores e costumes, o que evidentemente favorece o desenvolvimento, embora torne a vida mais previsível ou mesmo mais monótona, inconciliável com qualquer tipo de risco.

Outro traço de completude é um multiculturalismo cada vez melhor vivido e desejado, aliado a uma crescente adesão aos direitos humanos, todos eles, inclusive o direito da mulher de abortar até o quarto mês de gravidez, a liberação da maconha para uso médico e recreativo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a prisão após condenação na primeira instância, a autorização da ortotanásia, e outros direitos combatidos no Brasil, como o cuidado com o meio ambiente e o reconhecimento das nações indígenas.

Isso numa sociedade de economia capitalista regulada de maneira a gerar e distribuir riqueza, equidade, igualdade em um ambiente de liberdade, tranquilidade e cidadania. Uma sociedade "entoada". 

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