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Rosa Fonsêca: Basta do mundo do macho
Opinião

Rosa Fonsêca: Basta do mundo do macho

Abaixo Bolsonaro, o patriarcado e o capitalismo
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Este mundo foi implantado pelo homem branco ocidental. O seu resultado é a catástrofe patriarcal capitalista que aí está. Essa sociedade, portanto, nada tem de natural, é uma construção histórica e, como tal, pode ser superada.

Nós, mulheres, não temos responsabilidades na implantação desse patriarcado. Ao contrário, a nossa história está marcada por essa dominação. Ao compreendermos isso poderemos contribuir destacadamente para darmos um basta neste reino de barbárie, genocídio, ecocídio, racismo, machismo, LGBTfobia, dominação, exploração, guerras, feminicídio, nacionalismo, populismo, narcisismo, fundamentalismo, obscurantismo, intolerância, coronavírus, desemprego, tecnologia do confinamento humano, inutilidade do ser humano, disseminação de agrotóxicos e devastação ambiental com seu desmatamento e aquecimento global, política de segurança genocida e racista e neofascismo bolsonarista em curso que alimenta estes e outros retrocessos.

E, então, a história da humanidade e da natureza será uma outra história. Seus caminhos ainda não traçados encontraram finalmente, através da nossa revolta consciente e de uma proposta de práxis inovadora a possibilidade de voarmos na busca da sociedade da emancipação humana e ambiental.

De nada adiantou a caça às bruxas para limpar o terreno com o objetivo da implantação desta sociedade. A nova dominação das mulheres produziu resistências. Muitas ainda desconhecidas. Mas, a gestação por uma outra sociedade adubou a imaginação feminina.

Também nada resolveu a expansão dessa sociedade com a extensão da dominação sobre escravas(os), índias(os) e todos os povos do mundo. Um clamor contido de revolta se espalhou pela Terra.

Foram precisos séculos para se tentar enraizar o novo patriarcado. E isso só aconteceu porque, de um lado, se acreditou na versão patriarcal de que nós, mulheres, não tínhamos história. Do outro lado, por causa dessa lacuna, ficamos desprovidas de uma crítica que alcançasse as raízes da dominação. Em razão disso, os chamados “desenvolvimento” e “progresso” foram acompanhados de uma lista de sofrimentos que atingiu níveis alarmantes sobre os povos colonizados e escravizados e, em particular, sobre as mulheres.

Hoje, a barbárie se instalou com a fronteira histórica do patriarcado produtor de mercadorias. A catástrofe produzida pelo sistema no seu limite interno e externo alcançou todo o planeta e se transformou numa ameaça à existência da humanidade e da natureza.

Não dá para reproduzir aqui a lista de horrores dos nossos sofrimentos anteriores e atuais. São numerosos, cruéis, dolorosos e quase indescritíveis. O que é mais importante e decisivo, aqui e agora, é compreendermos suas causas, seus fundamentos para que possamos dimensioná-los e superá-los.

Anteriormente, não conhecíamos a nossa própria história. Quase nada sabíamos sobre nossa posição subordinada nas sociedades pré-modernas. E, muito menos, nas sociedades modernas, sociedades produtoras de mercadorias que vieram em seguida. Hoje, estamos começando a compreender a nossa própria história e, ao captarmos seus fundamentos, reuniremos melhores condições para a adoção de uma prática capaz de conquistarmos a nossa emancipação. E, ainda mais agora, que podemos contar com uma formulação teórica inovadora que está à nossa disposição e à altura dos nossos desafios.

Nós e o patriarcado produtor de mercadorias somos resultado de uma longa história patriarcal judaico-cristã ocidental da socialização pelo valor (valorização do dinheiro pelo trabalho) e da dissociação sexual (cisão entre os papéis dos homens e das mulheres). Para que o patriarcado com sua racionalidade pudessem impor-se na esteira do legado antigo, era necessário deslocar a mulher e tudo o que ela representava. Assim, arrancaram-nos a ciência medicinal empírica e implantaram um projeto completamente diverso do nosso relacionamento com a natureza.

Para esse resultado contribuiu decisivamente o homem branco ocidental. Sua origem vem da economia das armas de fogo nos primórdios da modernidade e do poder destrutivo destas. Através disso se deu origem ao sistema patriarcal produtor de mercadorias, o capitalismo. Através da troca no mercado, as mercadorias produzidas se tornaram produtos sociais. Essas mercadorias contêm valores que representam uma determinada energia social despendida para produzi-las, ou seja, o trabalho. E essa representação exprime-se, por sua vez, num meio particular, o dinheiro, que expressa a forma geral do valor para todo o universo das mercadorias.

A relação social mediada por essa forma põe de pernas para o ar o relacionamento entre as pessoas e os produtos materiais. Os membros da sociedade como pessoas, aparecem como associais, como simples produtores privados e indivíduos sem relações. O relacionamento social apresenta-se, pelo contrário, como relação entre objetos (muitos deles animados, como se vê com a inteligência artificial) postos em relação entre si tendo por base a quantidade abstrata de valor que representam, cuja medida é o tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-lo. As pessoas são objetivadas e as coisas personificadas.

Com isso, estamos diante do fetichismo da mercadoria que inverte a realidade ao fazer com que o concreto (a mercadoria) seja o mero condutor do abstrato (o valor). E, assim, origina-se uma alienação recíproca sobre e entre nós, membros dessa sociedade, que não utilizamos os nossos recursos de acordo com decisões comuns conscientes, mas, numa servidão voluntária, submetemo-nos a uma relação oculta entre coisas, nossos próprios produtos, comandados pela forma dinheiro.

Nessas coisas produzidas que constituem valores econômicos, não se levam em conta as suas qualidades sensíveis na medida em que são representantes materiais de trabalho indiscriminado e que apenas como tal se encarnam na forma do dinheiro. Então, estamos diante de um absurdo social em que o processo vivo de nossa relação com a natureza e as relações sociais que se estabelecem aparece como propriedade de coisas mortas. A atividade viva de homens e mulheres é absorvida pelos seus próprios produtos, promovidos a quase sujeitos da sociedade, enquanto os seus criadores(as) são degradados a meros acessórios.

Não existiria esse sistema patriarcal produtor de mercadorias se não existisse um espaço separado, dissociado da produção, para cuidar da casa, da criação e educação dos filhos, da assistência e cuidados humanos, do afeto, erotismo, sexualidade, amor, tesão, paixão, um reino de sentimentos e emoções dissociados da esfera do trabalho e, ao mesmo tempo como garantidor da produção e reprodução da mercadoria força de trabalho para a produção. Esse espaço foi imposto a nós mulheres como espaço subalterno expressando a dominação patriarcal moderna e pós-moderna.

O conceito abstrato de trabalho não aborda essas atividades femininas de reprodução. O feminismo, que em grande medida se fundamenta no marxismo do movimento operário com sua visão retrógrada de positividade do trabalho, ficou desarmado diante dessa questão fundamental.

O conjunto de relacionamento social no capitalismo, portanto, não se determina somente pelo auto-movimento fetichista do dinheiro e pelo caráter de fim em si do trabalho. Pelo contrário, verifica-se uma dissociação, uma cisão, especificada sexualmente mediada dialeticamente com o valor. Não estamos aqui diante de nenhuma relação de derivação lógica imanente entre o valor e a dissociação. A dissociação é o valor e o valor é a dissociação (Roswitha Scholz). Cada um está contido(a) no outro(a) sem ser idêntico(a) a ele(a). Ambos constituem momentos centrais e essenciais da mesma relação social.

Diante disso, como enfrentar e superar o feminicídio, a remuneração salarial rebaixada frente aos homens, a discriminação para ocupar postos de direção, o aprisionamento pelo “trabalho” doméstico, confinamento pela tecnologia, estresse nas alturas, para ser bela e gostosa, administrar a casa e ter dinheiro para sustentar a casa e o macho, cujo mundo acabou, sem enfrentar e superar essa relação social? E, ainda mais agora, que essa relação social fundamentada na socialização pelo valor e na dissociação sexual vive a sua crise final? O aumento da produtividade pelo uso cada vez mais decisivo das máquinas chegou a um ponto em que está sendo dispensado mais trabalho do que ainda poderia ser adicionalmente mobilizado pela expansão dos mercados e da produção (Robert Kurz). O aumento de mais-valor (mais-valia) relativo por trabalhador individual não adianta mais nada porque o número de trabalhadores no conjunto utilizáveis diminui consideravelmente. Esse ponto está aí escancarado, inclusive para quem insiste em não querer ver.

Estamos diante, portanto, da relação entre a produtividade, as condições da valorização e o esgotamento da sua identidade masculina. Pela primeira vez na história da humanidade, a problemática global da crise encontra sua expressão na questão feminina. Superar o patriarcado, hoje, é superar a forma fetichista da mercadoria. Pois aqui reside o fundamento da dissociação patriarcal que apresenta um estado social em que a sociedade não tem consciência de si mesma, não planeja nem organiza diretamente, na prática, sua própria forma de socialização, mas tem que representá-la simbolicamente num objeto externo, o dinheiro. Esse objeto assume, então, um significado sobrenatural que não é idêntico à sua forma externa, mas que aparece através desta. Em virtude de seu significado como um totemismo objetivado e secularizado da modernidade, ele adquire, apesar de sua banalidade material, poder sobre todos os membros dessa sociedade.

Nós, mulheres, mantivemos uma impensável e impossível gestação para a vinda de uma sociedade diferente desta. Sonhamos durante muito tempo com uma outra história e, agora, devemos adquirir plena consciência para, através de uma prática correspondente, conquistarmos a emancipação.

Pois, chegou o momento de nós, mulheres, fazermos um chamamento amplo, geral e irrestrito para que nós, seres humanos, possamos suplantar esse estado de coisas, lutando não apenas contra os efeitos, mas para superarmos as suas causas.

Que, na dialética entre imanência e transcendência não fiquemos aprisionadas pelos abusos incessantes dessa sociedade machista, fetichista, patriarcal produtora de mercadorias. Essa sociedade, como vimos , está no seu limite e isso possibilita uma oportunidade histórica para irmos muito além dela, eliminando a ameaça que representa de extinção da humanidade e do planeta. Que possamos compreender definitivamente que o capitalismo, apesar de todas as suas barbaridades, engendrou condições que, através de um novo movimento social transnacional emancipatório, podem ser utilizadas para a conquista da emancipação humana e ambiental.

Mulheres, sejamos realistas, pensemos o impensável, façamos o impossível!

Rosa Fonsêca, socióloga, Mestra em Educação, integrante do Crítica Radical e da União das Mulheres Cearenses

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