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André Haguette: Perigo na nossa democracia
Opinião

André Haguette: Perigo na nossa democracia

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André Haguette, sociólogo. Foto: Mauri Melo, em 23/09/2011 (Foto: O POVO)
Foto: O POVO André Haguette, sociólogo. Foto: Mauri Melo, em 23/09/2011

No meu último texto, escrevi sobre os perigos que corria a democracia americana na última eleição. Concluia dizendo: "a democracia, não somente a democracia americana, pode sair gravemente machucada dessa eleição", o que a birra de mau perdedor de Donald Trump só piora. Hoje, quero refletir sobre os perigos que nossa democracia enfrenta, não no seu processo eleitoral que é invejável, mas na sua vivência cotidiana, nos três níveis de governo.

Refiro-me especificamente a nosso esvaziado sistema de representatividade devido à grande quantidade de siglas de aluguel. Como é sabido, os partidos políticos ocupam um lugar privilegiado numa democracia representativa por lançar pontes entre a sociedade civil, os governados, e a sociedade política, os governantes. Partidos fortes, com metas, programas e ideologias ou utopias claramente definidos conseguem representar adequadamente os interesses materiais e ideais de classes e grupos sociais distintos, garantindo o jogo público de forças políticas, isto é, um jogo aberto e administrável nas suas contradições . A multiplicação ad nauseam de partidos no nosso sistema político chega a não significar absolutamente nada na impossibilidade de diferenciar programas e ideologias entre os partidos, dificultando a governança pela quase impossibilidade de formar sólidas alianças e, consequentemente, governar com maioria estável, sem que seja necessário o recurso à sedução e à cooptação a cada votação. Quem sofre com isso é a sociedade civil dividida e sem firme representação; quem se beneficia são os agentes do poder econômico que, numa economia capitalista, se comunicam diretamente com os aparelhos políticos e burocráticos dos governos.

Dentro do congresso, das assembleias e das câmaras, vê-se que senadores, deputados e vereadores de partidos sem substância própria se reagrupam em bancadas e igrejas de toda espécie em busca da consecução de seus interesses, por meio de ajuntamentos não sancionados pelo voto. Os bastidores do poder derrubam a transparência do voto, realizando o esvaziamento do eleitor. Passa-se de uma democracia republicana para uma oligarquia de bancadas clandestinas, matrizes dos verdadeiros interesses dos eleitos.

Dessa forma, a sociedade civil cede lugar a novas igrejas e bancadas que, como escreve Ricardo Kotoscho, "brotam de toda parte". Ultimamente, "a sociedade civil cede lugar às corporações militares e religiosas, abrindo espaço para as milícias e o crime organizado, cada vez mais influentes". Corporações militares e religiosas são totalitárias e fechadas não se ajustando à necessária polivalência da democracia representativa, além de, imiscuindo-se na política, desvirtuarem suas autênticas funções.

O grande perigo reside, portanto, na multiplicação e no esvaziamento dos partidos políticos. Não se trata de desejar um sistema bipartidário rígido como o americano, que impossibilita coalizões e dificulta a tomada de decisão. Parece razoável pensar num sistema multipartidário de cinco ou seis partidos representativos de interesses de classes e grupos sociais, que permita alianças para uma governança autônoma e programática. 

 

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