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Maximiliano Ponte: Adoeci: a invisibilidade delas
Opinião

Maximiliano Ponte: Adoeci: a invisibilidade delas

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Maximiliano Ponte
Médico-psiquiatra, pesquisador da Fiocruz, membro do Coletivo Rebento - Médicos e Médicas em Defesa da Ética, da Ciência e do SUS.
 (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Maximiliano Ponte Médico-psiquiatra, pesquisador da Fiocruz, membro do Coletivo Rebento - Médicos e Médicas em Defesa da Ética, da Ciência e do SUS.

Precisei ficar hospitalizado. Adoecer é entrar no campo do incerto e vislumbrar a finitude. Ansiedade e irritação nos dão as mãos, numa angustiante valsa. Não podendo conter em nós a frustração, projetamos esse sentimento, transmutado em raiva, para aqueles que cuidam de nós.
O cuidado direto e cotidiano ao paciente no ambiente hospitalar é feito pela equipe de enfermagem, formada, sobretudo, por mulheres. O cuidado médico é feito mais comumente por homens, que fazem visitas. Social e financeiramente, o segundo grupo de profissionais é mais valorizado. Mulheres cuidam, homens visitam. Impossível não se lembrar dos cuidados aos filhos: mãe/enfermagem, pai/medicina. Ambos os sistemas estão marcados em um modelo patriarcal. E, de modo coerente com tal modelo, a flecha raivosa da projeção tem como alvo a equipe de enfermagem, que está sempre por ali a zelar por nós.
O mundo não para porque estamos de olhos fechados. A vida vai seguindo seu curso, as pessoas seguem com seus dramas e suas necessidades. Internado, conversei com a mãe de um jovem paciente, que partira recentemente desta vida muito cedo. Meus pacientes continuaram precisando dos meus cuidados. Alguns, frustrados, chegaram a ser hostis com as secretárias (do sexo feminino, não é coincidência!), de modo assemelhado a mim mesmo, possivelmente.
Durante a internação, minha companheira esteve sempre leoninamente ao meu lado. Minha alta se deu no dia do aniversário da minha mãe. "O maior presente", escreveu minha mãe, no grupo da família. Usei neste texto, em diferentes trechos, o “nós” em substituição ao “eu”, o que me parece ter um quê de tentativa de mascarar minhas culpas e ocultar minha masculinidade (por vezes) frágil.
Agradeço a todos que cuidaram de mim neste momento, sem citar nomes. Sou grato a eles, os médicos, cujos nomes bem lembro e a todas elas cujos nomes sequer aprendi. Bradar elogios no silêncio consiste, obviamente, em uma alternativa imperfeita. Mas é o que é possível fazer, neste momento, para mitigar injustiças, minhas e históricas, e reconhecer as profundas assimetrias de gênero que se estabelecem em diferentes campos da nossa sociedade.

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