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A empregada do juiz Borba e nosso passado escravista
Opinião

A empregada do juiz Borba e nosso passado escravista

Esses casos só escancaramnosso passado escravista. Passado tão entranhado nas nossas vidas e procedimentos íntimos que torna a coisa mais normal desse mundo manter alguém em casa nessas condições, requerendo laços familiares inexistentes
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Sempre que surgem denúncias envolvendo pessoas em situação análoga à escravidão que vivem em ambiente familiar, alguém alega que aquela empregada doméstica que não recebia salário, não tinha direito a férias ou folga por anos a fio faz parte da família. Via de regra, até a vítima considera isso dada a situação da vida restrita em que, na maioria dos casos, vivem essas pessoas já envelhecidas, adoentadas e sem contato com familiares consanguíneos.

O último desses casos é o que envolve o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Jorge Luiz de Borba, com amplo conhecimento em direitos trabalhistas, tanto por ter apresentado trabalho acadêmico na área, quanto por atuar em processos nesse segmento. No caso, a empregada é uma mulher surda que vivia à margem de qualquer cuidado no que diz respeito à segurança empregatícia, de acordo com a fartura de informações que chegam às mídias, TVs, e sites de imprensa. Borba disse que "a mulher sempre foi parte da família dele", e agora sugere uma adoção afetiva para dar garantias legais familiares e de herança à empregada.

Infelizmente, esses casos só escancaram de forma visceral nosso passado escravista. E esse passado está tão entranhado nas nossas vidas e procedimentos íntimos que torna a coisa mais normal desse mundo manter alguém em casa nessas condições, requerendo laços familiares inexistentes. A palavra "família" surge como uma espécie de oásis, mas na verdade é uma brecha nas relações que deveriam ser norteadas como trabalho e ter direitos básicos assegurados.

Todas as vezes que leio algo sobre o juiz catarinense vem à minha mente o livro "Uma vida em segredo", de Autran Dourado, e a história de Biela, filha única que, com a morte dos pais, passara a viver com os tios. Biela tinha posses, mas não tinha jeito de moça da cidade. Não conseguia se equilibrar num salto nem ficava à vontade num vestido de festa. Os tios, aos poucos, foram tomando conta do dinheiro de Biela e a empurrando mais para o final da casa, até que ela mesma passou a dormir com os empregados, comer após os tios deixarem a mesa, a não exigir roupa, calçado ou qualquer outra coisa. O tempo, para Biela, tornou-se o único empecilho para que se apagasse por completo.

Também me aparece na memória a personagem Mocinha, do conto "Viagem a Petrópolis", de Clarice Lispector. Mocinha havia sido levada do Maranhão para o Rio, por uma mulher rica que logo depois, parte para Minas, e lhe dá algum dinheiro para ir se virando como podia. Mocinha passou a morar em Botafogo. Com o tempo, os habitantes da casa ficaram intrigados com aquela personagem que os irritava só por existir. Até que tiveram uma ideia: iam a Petrópolis, então, levariam consigo Mocinha e a deixariam por lá como quem descarta um móvel antigo sem nenhum valor.

Tinha falado há pouco do nosso passado escravista e como ele está presente no nosso cotidiano, esquecido, às vezes, num quartinho lá pelas bandas do quintal ou no fundo do apartamento. Geralmente esse passado se materializa numa mulher velha, adoecida, sozinha, sem palavras. Como Biela ou Mocinha, à espera do descarte final ou de saber que era apenas uma peça insignificante na engrenagem da "família".

 

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