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Emília Lopes: O copo preto e o desamor de pré-carnaval
Opinião

Emília Lopes: O copo preto e o desamor de pré-carnaval

Quando ele se foi, mergulhei nela: - Você precisa de ajuda? A resposta engasgada, tremida e clássica: - Não, obrigada. E sorriu sem cor. Havia medo dele, da família, das amigas, dos julgamentos, do desamparo e tantos outros
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Era domingo de pré-carnaval. Do meu lado, vivi angustiada a violência doméstica que saboreava amargamente uma mulher, tensa e sedenta de paz, ali na multidão, agarrada ao palco. Voltei minha atenção para ela e o sujeito que a cercava por trás. Colou nela e esbravejou: - Louca! Louca! Louca! Louca! Você é uma louca! Eu consegui contar umas cinco ou seis vezes! Fez chacota dela, deu gargalhadas irônicas diabólicas, e eu ali, dura, estômago oco e frio.

Ela tesa, medrosa, o olhar vago e sem rumo: quase cega. Não tinha molejo nenhum no corpo, apesar do axé, e segurava um copo térmico preto com canudo. Pensei: Ela não vai conseguir engolir esse líquido espinhoso, a garganta fechada e a língua morta. E então, ele farto de agredir, começou a dizer que iria embora. Ela acenou com a mão, consentindo. E ele foi, por um tempo. E voltou.

Eu sapateava fazia tempo, para perguntar se ela queria ajuda. Quando ele se foi, mergulhei nela: - Você precisa de ajuda? A resposta engasgada, tremida e clássica: - Não, obrigada. E sorriu sem cor. Havia medo dele, da família, das amigas, dos julgamentos, do desamparo e tantos outros.

Mas eu me escancarei irresignada sobre ela: - Eu sou advogada de família, trabalho com violência doméstica. Isso que você acabou de passar é violência doméstica. Você precisa de ajuda, de uma rede de apoio, amigas, familiares. Ela agradeceu.

Deslizei dois passos para o lado, pensando ter cumprido minha missão. Refleti ligeiro, fitei-a insatisfeita. Voltei os dois passos e indaguei: - Você quer meu telefone? Ela me olhou espantada, fez um ar de alívio, e disse: - Quero sim!

O agressor voltou. Meus pelos içaram. Imagine os dela. Continuava com aquele copo preto térmico e seu canudo, que não sabia fazer engolir uma gota. Dessa vez, ele não se aproximou tanto.

Perscrutei o salão, espalhando os olhos pelos quatro cantos. Mas minha vista já não a alcançou mais, não concretamente, porque ainda consigo vê-la agora: o estômago embrulhado, o medo, o corpo frio, as pernas trêmulas, a bebida amarga que carregava naquele copo preto e o fardo pesado que lhe sufoca os ombros.

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