Logo O POVO+
Heitor Ferrer: As violências no Ceará
Comentar
Opinião

Heitor Ferrer: As violências no Ceará

.Em 2023, foram 2.893 assassinatos; em 2024, o número saltou para 3.178 vidas ceifadas. Foram 264 mortes por mês. É como se, a cada mês, um avião lotado de cearenses caísse e matasse todos os passageiros.
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Comentar
Heitor Ferrer (Foto: Arquivo pessoal )
Foto: Arquivo pessoal Heitor Ferrer

A violência contra a vida tornou-se uma tragédia nacional e, no Ceará, ela atinge proporções insuportáveis. Dentre as 27 unidades da federação, somos o 3° estado mais violento. Em 2023, foram 2.893 assassinatos; em 2024, o número saltou para 3.178 vidas ceifadas. Foram 264 mortes por mês. É como se, a cada mês, um avião lotado de cearenses caísse e matasse todos os passageiros.

Quando a morte é coletiva, como num desastre aéreo, o país se comove. O noticiário se ocupa por dias, autoridades se pronunciam e o luto é nacional. Mas quando as mortes são individuais, uma aqui, outra acolá, a indignação se dilui e a tragédia se banaliza. São nove assassinatos por dia. Nove histórias interrompidas e ninguém se espanta. Tudo vira rotina. Essa é a forma mais cruel da violência, a que elimina a vida. No entanto, não é a única.

O Ceará convive com tantas outras violências, silenciosas, persistentes e igualmente devastadoras, que corroem, profundamente, a dignidade humana. Vejamos, por exemplo, a violência da saúde. Mais de sessenta mil cearenses aguardam por uma cirurgia. Muitos morrem nessa espera. É uma decretação de pena de morte oficial imposta pelo estado.

Existe também a violência da moradia. O déficit habitacional no Ceará passa de duzentos mil domicílios; mais de um milhão e meio de pessoas vivem em condições sub-humanas. Milhares sequer dispõem de um banheiro. Homens, mulheres e crianças dividem, sem qualquer pudor, o que deveria ser o último reduto da intimidade humana. É uma brutalidade animalesca.

No saneamento básico, a situação não é menos vergonhosa. Apenas 30% dos lares cearenses tem esgotamento sanitário. Sete em cada dez casas despejam seus dejetos a céu aberto. A violência social é patente. Dos 9 milhões de cearenses, 4,5 milhões vivem em situação de pobreza e 876 mil, de miséria.

Com tamanha degradação, o que esperar dos que emergem desse ambiente? Pessoas que crescem sem dignidade, que adoecem sem assistência e que vivem sem o mínimo de salubridade tendem, inevitavelmente, a reproduzir a violência que as cerca. É o ciclo perverso da exclusão. O Estado fabrica violência e depois tenta contê-la pela força.

O episódio recente no Rio de Janeiro, onde 121 brasileiros, entre eles quatro policiais militares, foram mortos em uma única operação, é o retrato mais doloroso desse colapso civilizatório.
No mundo ocidental, não há paralelo. Só aqui a barbárie conseguiu naturalizar-se a ponto de parecer rotina. A violência tem muitos prismas e todos refletem o mesmo abandono.

Enquanto continuarmos tratando o problema como uma questão apenas de segurança pública, achando que é caso de polícia, ignorando suas raízes sociais, seguiremos contabilizando mortos e justificando o injustificável.

O que você achou desse conteúdo?